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Artigo: O Direito Contratual no anteprojeto de revisão e atualização do Código Civil – Por Carlos Eduardo Pianovski Ruzyk

1. Uma reforma dirigida por vetores estruturais

O mister de revisão da codificação civil não se realiza de modo aleatório. Propor a atualização da norma que rege a vida privada pressupõe consciência dos vetores estruturantes de cada parte do Código Civil, e da relação entre estes e os alicerces sobre os quais se erige a codificação, de modo a assegurar a unidade sua sistemática. Foi essa a tarefa realizada pela Comissão nomeada pelo Senado Federal para a elaboração do Anteprojeto de Revisão e Atualização do Código Civil.      

A subcomissão de contratos (composta pelas Professoras Angélica Carlini, Claudia Lima Marques, pelo Professor Carlos Eduardo Elias e pelo subscritor deste texto) e a relatoria geral (integrada pela Professora Rosa Nery e pelo professor Flávio Tartuce) dirigiram a elaboração da proposta, debatida e aprovada pela Comissão, à luz de quatro vetores fundamentais. São eles: (a) aprofundamento da autonomia privada e da força obrigatória em contratos paritários, de modo coerente com as alterações operadas pela Lei da Liberdade Econômica, da qual derivam a excepcionalidade da revisão contratual e o respeito à alocação de riscos definida pelas partes; (b) aperfeiçoamento da disciplina da dimensão funcional dos contratos, não apenas no que tange à sua função social, mas, também, à função econômica derivada das escolhas das partes, em reforço à ratio da obrigação como processo; (c) incremento da confiança legítima por meio da boa-fé, seja na positivação de sua aplicação as diversas fases do processo obrigacional, seja pela afirmação de seu caráter de ordem pública; (d) modernização e aperfeiçoamento das regras gerais sobre direito contratual e dos contratos em espécie, em linha com as premissas assentadas nos vetores antes enunciados.

De modo coerente com esses vetores, a Comissão se pautou na construção jurisprudencial consolidada, na doutrina cristalizada (especialmente nos enunciados das Jornadas de Direito Civil do CJF), e se inspirou em exemplos exitosos de ordenamentos estrangeiros, e de soft law, ainda que sem cópia servil das regras alienígenas – aqui, o cuidado foi recolher a experiência estrangeira, e adaptá-la à tradição e às necessidades próprias do Direito brasileiro.

Passo, em síntese, a apontar como o Anteprojeto apresentado ao Senado Federal contempla esses vetores.

  1. Liberdade Econômica e força obrigatória

A disciplina do Direito Contratual no Código Civil sofreu relevantes alterações derivadas da Lei da Liberdade Econômica, que buscou equilibrar o sentido de socialidade1 que permeava a redação original do Código Civil, aprovada em 2002, e o valor social intrínseco da livre iniciativa, assegurando a higidez do exercício da autonomia privada em contratos paritários, sejam eles civis ou empresariais

Na mesma lei, foi explicitada (porque já inerente ao sistema, pautado na livre iniciativa constitucional) a norma que assegura a intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual.

O Anteprojeto de Revisão do Código Civil singra esse itinerário apontado pela legislação vigente, para aprofundar aquilo que decorreu da Lei de Liberdade Econômica quanto à ampliação da autonomia privada e a garantia da força obrigatória dos contratos.

Não se ocupa o Anteprojeto das relações de consumo, nem se orienta pela racionalidade que a elas é própria, e que é preservada sob a regência da lei especial (art. 421-A do Anteprojeto).

A proposta de revisão amplia os mecanismos que favorecem a prevalência da autonomia privada nos contratos paritários, com o incremento do espaço de escolhas dos contratantes, bem como aperfeiçoando as regras pertinentes a figuras jurídicas destinadas a reforçar a obrigatoriedade dos contratos.

Esses comandos vêm em linha com a declaração de direitos de liberdade econômica, especialmente o inciso VIII do artigo 3º, que dispõe ser direito de toda pessoa natural ou jurídica, em conformidade com o art. 170 da Constituição, “ter a garantia de que os negócios jurídicos empresariais paritários serão objeto de livre estipulação das partes pactuantes, de forma a aplicar todas as regras de direito empresarial apenas de maneira subsidiária ao avençado, exceto normas de ordem pública”.

Mantêm-se, pois, as previsões sobre os princípios da intervenção mínima e excepcionalidade da revisão contratual nos contratos paritários, com redação congruente com o dispositivo acima citado.

Há, também a integral conservação da regra que prevê a presunção de paridade e simetria tanto dos contratos empresariais como dos contratos civis (art. 421-C do Anteprojeto), que somente pode ser afastada mediante a presença de elementos objetivos.

Trata-se de expressão, a rigor, de uma dimensão funcional mais ampla, que permeia os institutos fundamentais de direito privado, e que permite afirmar que a sua disciplina jurídica tem por função prima facie propiciar, como contributos, o exercício, a conservação e o incremento de liberdades.

Em contratos paritários e simétricos, a liberdade substancial2 para a realização de escolhas pelas partes está presente, a legitimar a sua chancela, como expressão da liberdade positiva3 dos particulares, em um espaço de não coerção (liberdade negativa)4. Daí porque, mantendo-se hígida a presunção legal de paridade e simetria, dados espaços de coerção são mitigados pelo Anteprojeto, ampliando-se, assim, o âmbito de exercício do poder de escolha das partes, bem como sua força jurígena (ou seja, geradora de normas pelos particulares para as suas próprias esferas jurídicas).

O contrato paritário, ou seja, aquele que não é de adesão5, contém em si presunção de liberdade substancial das partes que justifica, de per se, a imposição de auto-limitação por parte do juiz (intervenção mínima) e, por consequência, a excepcionalidade da revisão contratual.

A presença, adicionalmente, da simetria (ou seja, a ausência de relação de dependência entre de um contratante frente ao outro), justifica ampliação dos espaços livres de coerção. As assimetrias que afastam a presunção legal precisam ser suficientemente relevantes, de modo a se constituírem como grave déficit concreto de liberdade substancial (ou seja, da possibilidade concreta de fazer escolhas valorosas), a ponto de ensejarem verdadeira relação de dependência de um contratante frente ao outro. Não é qualquer disparidade econômica ou informacional que afeta de modo relevante a possibilidade concreta de realizar escolhas.

Tudo isso vem em suporte aos pilares sobre os quais se erige a força obrigatória dos contratos, quais sejam, o valor jurídico da promessa, como expressão jurígena advinda do exercício da liberdade, e a tutela da confiança legítima. 

Quanto à ampliação dos espaços de liberdade econômica, alguns relevantes exemplos podem ser citados – integrando, também, o vetor de modernização e aperfeiçoamento das regras sobre direito contratual:

  • O parágrafo 1º do art. 421-C do anteprojeto traz regras interpretativas especiais aos contratos empresariais, podendo-se citar como exemplos o emprego dos “usos e dos costumes do lugar de sua celebração e do modo comum adotado pelos empresários para a celebração e para a execução daquele específico tipo contratual” e o reconhecimento da atipicidade legal inerente a boa parte dos contratos empresariais, a determinar, como consequência, a prevalência do livremente pactuado;
  • Os incisos IV e V do art. 421-D admitem, em contratos que não sejam de adesão (ou seja, paritários), que as partes pactuem glossário para a definição consensual dos termos empregados no contrato, bem como definam critérios de interpretação da lei, quando esta puder gerar controvérsias;
  • Reforço à obrigatoriedade da observância da alocação de riscos definida pelas partes, inclusive como limitadora da revisão contratual por fatos supervenientes, consoante o parágrafo 1º do art. 478;
  • Remissão, no artigo 421-F, aos princípios do Direito de Empresa (art. 966-A), como aplicáveis aos contratos empresariais, deixando explícita a “força obrigatória das convenções, desde que não violem normas de ordem pública”;
  • Aperfeiçoamento da disciplina dos vícios ocultos, ampliando prazos de garantia, em proveito do credor e do bom adimplemento contratual, oferecendo ao credor, além dos direitos à redibição e ao abatimento do preço, a possibilidade de exigir saneamento do vício, mediante custeio de reparos
  • Aperfeiçoamento das regras sobre exceção de inseguridade, sob inspiração, especialmente, da CISG, substituindo a necessidade de prova sobre diminuição patrimonial pela demonstração de “grave insuficiência em sua capacidade de cumprir as obrigações” (art. 477), assegurando ao credor, ainda, a resolução antecipada da avença quando “o devedor não satisfizer a prestação devida nem oferecer garantia bastante de satisfazê-la após interpelação judicial ou extrajudicial”6;
  • Previsão sobre a possibilidade de resolução antecipada, independentemente da exceção de inseguridade, quando “antes de a obrigação tornar-se exigível, houver evidentes elementos indicativos da impossibilidade do cumprimento da obrigação”. A regra (art. 477-A), inspirada na CISG e no BGB, visa a reforçar a obrigatoriedade dos contratos.
  • Construção de mecanismo de revisão e resolução contratual7 por fatos supervenientes (art. 478 e 479) que acolhe o conceito técnico de “circunstâncias objetivas que serviram de fundamento para a celebração do contrato”, (Grundlage)8 sem, contudo, dispensar a necessidade de demonstração da imprevisibilidade (aferível em concreto, conforme a “qualificação da parte prejudicada pela onerosidade excessiva e diante das circunstâncias presentes no momento da contratação). Além disso, o mesmo dispositivo projetado exige que a alteração de circunstâncias exceda os riscos normais do negócio, deixando claro que “para a identificação dos riscos normais da contratação, deve-se considerar a sua alocação, originalmente pactuada”, o que pretende assegurar o caráter excepcional da revisão contratual por fatos supervenientes, limitando-a ao necessário para “mitigar a onerosidade excessiva, observadas a boa-fé, a alocação de riscos originalmente pactuada pelas partes e a ausência de sacrifício excessivo às partes”;
  • Prevalência daquilo que for livremente pactuado em contratos de seguro de grandes riscos (art. 757-A);
  • Possibilidade de as partes afastarem a regra de revisão contratual por redução de preços de mão de obra e materiais nos contratos de empreitada paritários e simétricos (art. 620, parágrafo único);
  • Validade da cláusula de limitação ou de exclusão da responsabilidade do depositário, desde que em contrato paritário e simétrico (art. 629, parágrafo único);

A unidade sistemática que se dirige pelos vetores aqui explicitados se revela também no fato de que as subcomissões de Obrigações, de Responsabilidade Civil e de Direito das Coisas caminharam pela mesma senda, propondo regras que se coadunam com a garantia da força jurígena da autonomia privada e, por consequência, com a força obrigatória dos contratos. Não por acaso, as propostas foram acolhidas pela Relatoria-Geral e aprovadas pelos demais membros da Comissão.

São exemplos disso, sempre em contratos paritários e simétricos: (a) a proposta de nova redação ao parágrafo único do art. 413, formulada pela subcomissão de obrigações, que veda ao juiz, nos contratos paritários e simétricos, proceder à redução da cláusula penal sob o fundamento de ser ela excessiva; bem como (b) a autorização para a pactuação de cláusulas de não indenizar e de limitação do dever de indenizar, proposta pela subcomissão de responsabilidade civil (parágrafo único do art. 629); (c) a possibilidade de celebração do pacto marciano, conforme o projetado parágrafo 1º do art. 1.4289. 

  1. Aperfeiçoamento da Dimensão Funcional

A autonomia privada, bem como a liberdade contratual e a liberdade de contratar, advêm do princípio da livre iniciativa, cuja base constitucional se assenta nos arts. 1º, inciso IV e 170 da Constituição. O valor social intrínseco da livre iniciativa e do trabalho é afirmado como fundamento da República (ou seja, há o reconhecimento de que a livre iniciativa é socialmente valorosa de per se). Por isso, livre iniciativa é também fundamento da ordem econômica (art. 170 da Constituição)10.

Como a livre iniciativa já é dotada de valor social intrínseco, a norma não atribui a ela uma função social – enquanto o valor é algo inerente ao ser, a função é algo que se acresce a dado instituto, como contributo/prestação cuja realização é devida, por força da norma (dever-ser).

Assim, o que é dotado de função social não é a liberdade, mas, sim, os instrumentos para o seu exercício (propriedade e contrato) que, com base na correta leitura do art. 170 da Constituição, são funcionalizados.

Daí a manutenção, na Lei da Liberdade Econômica, não apenas do princípio da função social do contrato, mas do seu caráter limitador da liberdade contratual, o que se conserva no Anteprojeto – restando, por força da referida lei, afastada a previsão original de que a liberdade de contratar seria exercida “em razão” da função social do contrato, regra que padecia de inconstitucionalidade, haja vista o caráter jusfundamental da própria autonomia privada11. 

O Anteprojeto de Código Civil preserva, como não poderia deixar de ser, a função social do contrato, explicitando, no parágrafo 2º do artigo 421, algo que já decorre dos comandos do caput do artigo 421 e do art. 2.035 vigentes: “A cláusula contratual que violar a função social do contrato é nula de pleno direito”.12

Deixa claro, ainda, que a aferição das funções dos contratos deve levar em consideração os diferentes tipos contratuais, reconhecendo que as funções realizadas por contratos empresariais, que dizem respeito a “bens e serviços ligados à atividade de produção e de intermediação das cadeias produtivas”, não se confundem com aquelas próprias aos contratos de consumo, contratos de trabalho, ou contratos civis, cada qual merecendo tratamento próprio.

Quando o Anteprojeto se refere a “funções”, no plural, está a tratar não apenas da função social, mas, também, da função econômica.

Enquanto a função social decorre da norma, a função econômica decorre da liberdade das partes na realização da operação econômica13 que receberá as vestes jurídicas do contrato como instituto, sendo apreendida ex post pelo direito.

Essa função econômica é de extrema importância, pois diz respeito às necessidades concretas perseguidas pelos agentes econômicos por meio do contrato. O bom adimplemento é aquele no qual as prestações são também realizadas de modo a propiciar a realização do contributo econômico almejado pelos contratantes, e que se afere por meio da própria operação econômica, tomada em sua concretude.

O Anteprojeto trilha caminho coerente com o sentido da obrigação como processo, preconizado por Clóvis do Couto e Silva14.

A dimensão funcional é, também, essencial para a identificação das hipóteses de coligação contratual, consoante proposto na redação do art. 421-E.

A função econômica, ao lado da função social, é empregada no Anteprojeto para permitir a aferição da essencialidade da parte perdida para a qualificação da evicção parcial como considerável (parágrafo único do artigo 461).

Também é a função econômica, no Anteprojeto, um limite à revisão contratual por fatos supervenientes (arts. 478 e 479, inciso I). Ela também exerce papel relevante como um dos critérios qualitativos para determinar a viabilidade ou não do reconhecimento do adimplemento substancial (art. 475-A, inciso IV).

Propõe-se, também como expressão do aperfeiçoamento da expressão funcional dos contratos, a positivação da figura da frustação da finalidade do contrato, quando, “por fatos supervenientes”, “deixa de existir o fim comum que justificou a contratação, desde que isso ocorra por motivos alheios ao controle das partes e não integre os riscos normais do negócio ou os que tenham sido alocados pelas partes no momento da celebração do contrato”. A função econômica definida pelas próprias partes é, aqui, novamente, contemplada pelo Anteprojeto.   

  1. Boa-fé e confiança legítima

O Anteprojeto, na perspectiva dos deveres anexos, dispõe expressamente sobre aquilo que já estava consolidado na doutrina e na jurisprudência, quanto à incidência do princípio da boa-fé nas fases pré e pós contratual. Nesse sentido, ao artigo 422, na norma projetada, passa a dispor que “os contratantes são obrigados a guardar os princípios da probidade e da boa-fé nas tratativas iniciais, na conclusão e na execução do contrato, bem como na fase de sua eficácia pós-contratual.”

O Anteprojeto também qualifica a violação da boa-fé como inadimplemento (art. 422-A). Com efeito, ela integra o conjunto de deveres contratuais, sendo certo que o respeito à força obrigatória dos contratos passa por assegurar o cumprimento, também, dos deveres laterais, em harmonia com os deveres de prestação.

A Lei da Liberdade econômica já havia reforçado o papel hermenêutico da boa-fé e da confiança legítima, mediante as alterações promovidas no artigo 113 do Código Civil especial seu parágrafo 1º.

O anteprojeto, especificamente no âmbito dos contratos empresariais, reforça essa função hermenêutica da boa-fé, com o necessário esclarecimento de que aplicação do princípio, nesses contratos, demanda critérios de densificação coerentes com o que se pode compreender como confiança legítima nas relações entre profissionais, que exige, por evidente, juízos de autorresponsabilidade. É por isso que o projetado inciso II do art. 421-C dispõe que o atendimento à boa-fé objetiva nos contratos empresariais também se mede “pela expectativa comum que os agentes do setor econômico de atividade dos contratantes têm, quanto à natureza do negócio celebrado e quanto ao comportamento leal esperado de cada parte”.15

A boa-fé é, também, limite ao exercício de posições jurídicas. Um exemplo disso, no Anteprojeto, é o inciso II do parágrafo único do art. 479, que limita o direito à revisão contratual por meio da boa-fé.

No âmbito dos contratos em espécie, destaca-se o disposto na disciplina do contrato de prestação de serviços e de acesso a conteúdos digitais, permeado pela função integrativa da boa-fé, a dirigir, por exemplo, o emprego da inteligência artificial na prestação de serviço digital (art. 609-F) e as atividades dos “prestadores de serviços e de conteúdos digitais, em especial os de intermediação e de busca na internet” (art. 609-B).

Também se pode citar, a título exemplificativo, a disciplina projetada para os contratos de seguro, com especial ênfase aos deveres de boa-fé nos artigos 765, 771-D.

  1. Notas conclusivas

Pretendeu-se, neste texto, mediante um vol d’oiseau, oferecer uma visão panorâmica dos vetores da proposta de Revisão do Código Civil em matéria contratual.

Esperamos que o trabalho submetido à apreciação do Congresso Nacional tenha o condão de atender à necessidade de assegurar a manutenção da relevância normativa do Código Civil como norma geral, evitando sua obsolescência16, e primando pela segurança jurídica.


1 REALE, Miguel. O projeto de código civil: situação atual e seus problemas fundamentais. São Paulo: Saraiva, 1986, p. 9-11. Nas palavras do Autor: “O contrato é um elo que, de um lado, põe o valor do indivíduo como aquele que cria, mas, de outro lado, estabelece a sociedade como o lugar onde o contrato vai ser executado e onde vai receber uma razão de equilíbrio e de medida. E é por esta razão que estabelecemos um artigo do Projeto do Código Civil, que me parece muito importante ter presente, no qual se declara que contrato será terá que ser analisado em razão de sua função social. É o princípio da socialidade governando o Direito Obrigacional. É logo o primeiro artigo, quase que um preâmbulo de todo o direito contratual”.

2 Por liberdade substancial, entende-se a possibilidade concreta de realização de escolhas valorosas, considerando-se, assim, o contexto efetivo em que se situa o indivíduo ao qual as escolhas são formalmente oferecidas (SEN, Amartya. Desenvolvimento como Liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 32).

3 A liberdade positiva é o poder de definição dos rumos da própria vida, o senhorio da própria esfera pessoal (HANDLIN, Oscar; HANDLIN, Mary. As dimensões da liberdade. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1964, p. 25.). Admitir-se que, por meio da autonomia privada, os particulares criam normas para suas esferas jurídicas, dotadas de oponibilidade e reconhecimento, a dizer que a autonomia privada é integrada, em sua refinada conformação estrutural, por liberdade positiva.

4 BERLIN, Isaiah. Two Concepts of Liberty. In: Four Essays on Liberty. Oxford: Oxford University Press, 1979, p. 131.

5 RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. Vol III. São Paulo: Saraiva, 1996.

6 Sobre o tema, vide BANDEIRA, Luiz Octávio Villela. Exceção de insegurança no direito brasileiro. São Paulo: Almedina, 2022.

7 A previsão de uma regra que conjuga revisão e resolução é consagrada em ordenamentos estrangeiros, como a Alemanha (BGB, § 313), a França (Code Civil, art. 1.195) e a Argentina (Código Civil e Comercial da Nação Argentina, art. 1.091), estando presente também nos Princípios Unidroit, como fonte de soft law (art. 6.2.3.). A possibilidade de revisão contratual no Direito Francês foi isnerida no Code em recente reforma, entre os anos de 2016 e 2017. Sobre o tema, vide Sobre o tema, LARROUMET, Chistian; BROS, Sarah. Les Obligations. Le Contrat. 8e. ed. Paris: Economica, 2016, p. 413-415.

8 A inspiração da norma advém do BGB, sem, todavia, adotar-se, de modo puro, uma teoria da base do negócio, seja na linha de Oertmann, de Larenz, ou de Canaris. O conceito de base/fundamento (Grundlage) do negócio é instrumento útil, mas não se vincula, necessariamente, à adoção de uma dada teoria a respeito da revisão contratual. Enquanto na Alemanha, sob inspiração de Larenz, a imprevisão integra a base objetiva, confundindo-se com o que excede os riscos ordinários do negócio, na regra projetada, diversamente, riscos e imprevisão são conceitos distintos. Sobre o tema, vide CANARIS, Claus-Wilhelm O novo direito das obrigações na Alemanha. Revista da EMERJ. V. 7, n. 27, 2004; LARENZ, Karl. Base del Negocio Juridico e cumplimiento de los contratos. Trad. Carlos Fernandez Rodriguez. Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1956 (em especial, p. 226).

9 O pacto marciano, conforme Carvalho Santos, consiste em “estipulação pela qual uma das partes, o credor, pode ficar com o bem dado em garantia, se o devedor não paga a dívida no vencimento”, (SANTOS, J.M. de Carvalho. Código civil brasileiro interpretado. v. X. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1964, p. 91). Sobre o tema, mais amplamente, MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo. Pacto comissório e pacto marciano no sistema brasileiro de garantias. Rio de Janeiro: Processo, 2017.

10 MOREIRA, Egon Bockmann. Os princípios constitucionais da atividade econômica. Revista da Faculdade de Direito UFPR, Curitiba, dez. 2006, p. 103- 111.

11 SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2 ed, 2010, p. 199.

12 A nulidade de cláusulas contratuais que violam a função social é, desde a origem, consequência inerente à ratio do Código Civil, sendo afirmada desde a fase em que ainda tramitava no Congresso Nacional, como projeto de lei. Judith Martins-Costa, em seu clássico texto “O Direito Privado como um “sistema em construção”: As cláusulas gerais no Projeto do Código Civil brasileiro”, aponta expressamente, ao versar sobre o princípio da função social do contrato no, à época, projeto do Código Civil, que “a função social é, evidentemente, e na literal dicção do art. 420, uma condicionante posta ao princípio da liberdade contratual, o qual é reafirmado, estando na base na disciplina contratual e constituindo o pressuposto mesmo da função (social) que é cometida ao contrato. Ao termo condição pode corresponder uma conotação adjetiva, de limitação da liberdade contratual”, para concluir que “Na sua concreção, o juiz poderá, avaliadas e sopesadas as circunstâncias do caso, determinar, por exemplo, a nulificação de cláusulas contratuais abusivas”.  (MARTINS-COSTA, Judith.  Revista de Informação Legislativa. Brasília a. 35 n. 139 jul./set. 1998, p. 13). Embora a inconstitucional noção de “condicionante” da liberdade tenha sido superada, com acerto, pela Lei de Liberdade Econômica, permanece válida a conclusão sobre a nulidade das cláusulas que violarem a função social, haja vista os limites que esta pode impor à liberdade contratual naqueles contratos efetivamente dotados de uma função que transcenda a função econômica determinada pelas partes.

13 O contrato é, simultaneamente, operação econômica e instituto jurídico. ROPPO, Enzo. O Contrato. Coimbra: Almedina, 2009, p. 7-15.

14 Couto e Silva, em obra essencial para a compreensão do Direito das Obrigações, aponta o adimplemento como o fim do processo obrigacional, afirmando, sobre o fio-condutor do livro em que desenvolve a tese, que “o tratamento teleológico permeia toda a obra, e lhe dá unidade” (COUTO E SILVA, Clóvis do. A obrigação como processo. São Paulo: Bushatsky, 1976, p. 17). Parece fora de dúvida que, contemporaneamente, pensar nos fins do processo obrigacional demanda não apenas a realização do adimplemento, mas a efetivação de sua função econômica e quando houver, de sua função social.

15 Sobre a operatividade da boa-fé em contratos empresariais, explica Vinícius Klein: “No âmbito dos contratos empresariais a boa-fé objetiva é aplicável, entretanto, respeitado o contexto negocial. Afinal, a boa-fé já constava do Código Comercial de 1850, mesmo que em contexto diverso. Assim, o grau de esclarecimento presente num contrato entre duas empresas sofisticadas não é o mesmo que o exigido na relação de consumo. Todavia, o comportamento leal, com a disponibilização das informações essenciais à realização do negócio e à conduta cooperativa, de modo a executar o objeto contratual, é claramente exigível num contrato empresarial”. (KLEIN, Vinícius. Os contratos empresariais de longo prazo: Uma análise a partir da argumentação judicial.  Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014).

16 Nessa linha, preconiza o Ministro Luiz Edson Fachin: “Mas o sentido referencial do Código Civil para a compreensão da disciplina normativa do Direito Privado remanesce, o que faz avultar o desafio de construção de uma codificação que esteja, sempre, em sintonia com as demandas de seu tempo. Há, porém, limites estruturais e textuais. A tarefa hermenêutica precisa da norma formal a interpretar. A insuficiência textual e estrutural pode reduzir a relevância do Código, e dificultar a construção de sentido, limitando-o, e o condenando à obsolescência. Daí porque reformas são, de tempos em tempos, necessárias”. FACHIN. Luiz Edson. Reforma e Atualização do Código Civil Brasileiro e o Novo Código Civil Argentino. Conjur. 1º de março de 2024.

Fonte: Migalhas

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