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A alteração administrativa do prenome e gênero de transgênero

Por Marcelo Guimarães Rodrigues 1. Introdução A partir da edição do Provimento 73 da Corregedoria Nacional de Justiça, faculta-se aos interessados, autopercebidos como pessoa transgênero, requerer diretamente ao oficial do registro civil de pessoas naturais a averbação da alteração do prenome e do gênero no(s) assento(s) de nascimento e(ou) casamento. A normativa se refere a “transgênero”, ao…

Foto: katemangostar / Freepik

Por Marcelo Guimarães Rodrigues

Foto: katemangostar / Freepik

1. Introdução
A partir da edição do Provimento 73 da Corregedoria Nacional de Justiça, faculta-se aos interessados, autopercebidos como pessoa transgênero, requerer diretamente ao oficial do registro civil de pessoas naturais a averbação da alteração do prenome e do gênero no(s) assento(s) de nascimento e(ou) casamento. A normativa se refere a “transgênero”, ao passo que o precedente do STF (ADI 4.275/DF, julgado em 1º/3/2018) — tomado como uma de suas bases axiológicas, conferindo ao artigo 58 da Lei 6.015/73 interpretação conforme à Constituição da República, reconhecendo o direito da pessoa que desejar, independentemente de cirurgia de redesignação ou da realização de tratamentos hormonais ou patologizantes, à substituição de prenome e gênero diretamente no ofício do RCPN — diz respeito, especificamente, à “transexualidade”, espécie de menor amplitude que aquela.

2. Legitimação
Apto a deflagrar o procedimento é o maior de 18 anos de idade e habilitado(a) à prática de todos os atos da vida civil. O artigo 2º da normativa se refere à locução “toda pessoa”, todavia, é exclusivamente destinada à pessoa do “transgênero” (artigo 1º), que livre e conscientemente manifesta a vontade de alterar sua identidade civil (prenome) e designação sexual nos assentos de nascimento e casamento (se for o caso). Melhor seria dizer “toda pessoa transgênero”, maior e plenamente capaz, a quem é facultado o exercício, a qualquer tempo, da opção de promover referidas averbações mediante o cumprimento de certas exigências.

O requerimento respectivo, com a indicação precisa da alteração pretendida, deve ser assinado pelo requerente na presença do oficial (artigo 4º, parágrafos 2º e 3º). Não se impõe, nesses termos, a representação processual (ou procedimental que seja) de advogado ou defensor público. A norma não esclarece, mas será lícito supor que, nos casos em que o interessado não souber assinar, valerá sua assinatura “a rogo”, desde que aposta na presença do oficial registrador civil, que, valendo-se de sua fé pública, reconhecerá a validade do ato.

Os portadores de deficiência auditiva, de fala ou visual, que necessitarem, devem ser assistidos por tradutor ou intérprete da Língua Brasileira de Sinais (Libras ou Sistema Braile). Sempre que houver eventual juízo de qualificação negativo e a formulação de exigências, cabe, a pedido expresso da parte requerente, a confecção de nota devolutiva por escrito e encaminhamento do expediente ao juiz de Direito de registros públicos para dirimir a dúvida, aqui empregado o vocábulo em sua acepção técnico-jurídica, seguindo o rito do artigo 198 e seguintes da Lei Federal 6.015/73.

3. Alteração versus mudança
O provimento estabelece as diretrizes a serem observadas pelos oficiais do registro civil de pessoas naturais quanto aos requerimentos de averbação para alteração de prenome, agnome e gênero nos assentos civil de nascimento e casamento. Em verdade, quando a norma em tela menciona “alterar”, deixa implícita a ideia de “mudar”, de conteúdo e alcance mais abrangente. Alterar é diferente de mudar e de retificar.

Na alteração, não se cogita de reparar erro; modifica-se o que era certo e definitivo, geralmente implicando acréscimo. Na mudança, há uma substituição de um nome (ou prenome) por outro, envolvendo propósito mais amplo do que a alteração. Quem muda adota outro nome ou o transforma completamente. Já quem altera introduz modificação que não retira do nome o seu caráter anterior, permanecendo reconhecível, ao passo que na retificação se corrige um erro ou se repara uma omissão na redação do assento de nascimento em qualquer de seus elementos obrigatórios por lei (RODRIGUES, Marcelo Guimarães, Tratado de registros públicos e direito notarial, 2ª ed. São Paulo: Gen-Atlas, 2016, p. 118).

4. Prenome e agnome
O prenome é elemento obrigatório dos assentos civis de nascimento (artigo 54, 4º, LRP), casamento (artigo 70, 1º, LRP) e óbito (artigo 80, 3º, LRP). Trata-se de direito da personalidade nato, vale dizer, inexiste direito adquirido ao mesmo, constituído que é com certa liberdade de escolha, restringindo o Estado o registro de prenome vexatório, constrangedor ou ridículo (artigo 55, parágrafo único, LRP). Agnome é o elemento do nome civil usado para designar um indivíduo, distinguindo-o de seus homônimos. Frise-se que a mudança de prenome não compreende qualquer interferência nos nomes de família e não pode ensejar a identidade de prenome com outro membro da família. Convém lembrar que o novo prenome será definitivo dentro do sexo a que corresponder, e sua alteração somente poderá ser promovida mediante decisão judicial.

5. Designação de gênero
O provimento admite a possibilidade de mudança do gênero indicado nos assentos de nascimento e de casamento. Todavia, a designação do sexo é obrigatória apenas nos assentos de nascimento e óbito. Esse elemento não é indicado no assento de casamento em nenhuma circunstância no texto da Lei dos Registros Públicos (artigo 70, 1º a 10 e seu parágrafo único).

Sua inclusão no assento civil de casamento abrirá margem a uma disrupção na medida em que, ao lado dos assentos que por lei não abrigam tal elemento, outros surgirão que, com base no aludido provimento, poderão contê-lo. A averbação, nesse caso, seria realizada na perspectiva de uma verdadeira retificação do assento, de modo a preencher uma lacuna registral que, diga-se de passagem, não deriva da lei em sentido formal. Faz-se de conta que o registro de casamento apresenta uma omissão em um de seus elementos informativos, pela opção exclusiva do interessado. Creio não ter sido essa a melhor opção.

6. Natureza jurídica
Não se trata de ação, mas, sim, de procedimento de índole administrativa. O procedimento será realizado com base na autonomia da pessoa, que deverá declarar, perante o registrador do RCPN, a vontade de proceder à adequação da identidade mediante a averbação do prenome, do gênero ou de ambos. E independe de prévia autorização judicial ou da comprovação de realização de cirurgia de redesignação sexual, de tratamento hormonal ou patologizante. O registrador deverá identificar a pessoa requerente mediante coleta, em termo próprio, conforme modelo constante do anexo deste provimento, de sua qualificação e assinatura, além de conferir os documentos pessoais originais. O requerimento é assinado pelo interessado na presença do oficial, indicando a alteração pretendida.

7. Averbação do CPF, identidade civil e título de eleitor
Antes da averbação da alteração de gênero e prenome, o registrador deverá averbar o número do CPF e anotação da Carteira de Identidade e do número do Título de Eleitor (Prov. 63, CNJ). Cabe destacar que será realizado um ato de averbação pela mudança do prenome e do sexo, outro ato de averbação para a inclusão do CPF, nesse caso gratuita e ressarcível, e um terceiro ato para a anotação da identidade civil e título de eleitor. Aos reconhecidamente pobres, que assim se declararem, é assegurado que todos os atos acima serão gratuitos.

8. Laudo médico ou psicológico
O atendimento do pedido dirigido ao registrador civil independe ainda da apresentação de laudo médico ou psicológico, nos termos do referido provimento. Segundo as notas taquigráficas do julgamento da ADI 4.275/DF, o relator originário, ministro Marco Aurélio, restou vencido nesse aspecto. Como ficou, favorece idas e vindas em ponto nuclear da identificação civil, mormente de indivíduos propensos à instabilidade emocional, inseguros à autodeterminação do próprio gênero. Afinal, o registro estaria franqueado, de certa forma, aos influxos de uma indesejável fluidez.

9. Repristinação parcial dos assentos
A norma admite vir a ser desconstituída na via administrativa, mediante autorização do juiz corregedor permanente ou na via judicial, a mudança dos prenomes e do gênero (parágrafo 3º, artigo 2º). Autorizou uma espécie de repristinação parcial do conteúdo dos assentos civis de nascimento e casamento, mas não por erro evidente que conduziria à situação de nulidade ou anulabilidade do assento, como em regra seria ditado pela praxis registral, antes pela simples confissão do requerente, ainda que implícita, acerca da falta de uma perfeita compreensão de sua própria identidade autopercebida.

O restabelecimento do gênero e do prenome originários pode ser procedido a qualquer momento, sem prazo mínimo de carência, segundo consta pelo próprio interessado, e somente por ele (legitimação ativa). Todavia, já aqui haverá de ser representado no procedimento ou processo judicial por advogado ou defensor público mediante pedido devidamente fundamentado e instruído. Em seu completo silêncio, que, lacônica, ficou a dever maiores regramentos a respeito, parece ser a interpretação sistemática que mais se ajusta às suas diretrizes e à própria organicidade do Direito.

10. Atribuição de circunscrição territorial relativa
A averbação do prenome, do gênero ou de ambos poderá ser realizada diretamente no ofício do RCPN onde o assento foi lavrado. Há previsão também para a formulação do pedido em RCPN diverso do que lavrou o assento (artigo 3º, parágrafo único.). Nesse caso, deverá o registrador encaminhar o procedimento ao oficial competente, às expensas da pessoa requerente, para a averbação pela Central de Informações do Registro Civil. Por simetria, esse “ofício diverso” a que se refere a norma será o do domicílio atual do requerente, em consonância com as previsão legal similar para a prática de outros atos de atribuição do registro civil (artigo 50 e parágrafo 1º, e 67, parágrafo 4º, LRP) Sem prejuízo, em que pese a omissão da norma em comento, cabe aqui a exigência de prática de ato de ofício voltado à comunicação escrita, preferencialmente por meio eletrônico entre as unidades interligadas de registro civil, tendo em conta que se trata de ato vinculado do oficial registrador civil de pessoas naturais, em prol da segurança jurídica (artigo 93, 103 e 106, parágrafo único, LRP).

11. Inexistência de processo judicial
O requerente deve declarar a inexistência de processo judicial que tenha por objeto a alteração pretendida, como verdadeira condição de procedibilidade (artigo 4º, parágrafo 4º). Em complemento, é fixado que a tramitação anterior de processo judicial cujo objeto tenha sido a alteração pretendida será condicionada à comprovação de arquivamento do feito judicial (artigo 4º, parágrafo 5º).

A parte poderá requerer o desarquivamento e retomar aos trâmites da ação outrora interrompidos, em outros casos não há mais meios que permitam movimentar novamente aquele processo, como se dá na situação em que a pretensão foi alcançada pela prescrição intercorrente. Pertinente a indagação sobre qual o tipo e natureza jurídica do ato que, no caso concreto, levou ao arquivamento do feito judicial cujo objeto tenha sido a alteração pretendida.

Todos esses questionamentos serão válidos e poderão resultar em formulação de exigências pelo oficial registrador a serem cumpridas pelo requerente, desde que as certidões dos distribuidores cíveis e criminais exigidas previamente não sejam aptas — e normalmente não serão — para ilustrar com precisão o que de direito sucedeu na tramitação do processo judicial. Vale antecipar, diante de sentença anterior transitada em julgado em processo contencioso, impedido estará o interessado de renovar a mesma pretensão em juízo, seja fora dele.

12. Restrição de publicidade
Na certidão emitida, após a mudança de gênero e prenome, deverá constar a informação da existência de “averbação à margem do termo”, conforme prevê o artigo 21 e parágrafo único, da Lei Federal 6.015/73, e os números do CPF, carteira de identidade e título de eleitor. Já a certidão de inteiro teor poderá ser emitida a requerimento expresso do registrado, de procurador com poderes específicos, ou ainda mediante autorização judicial.

13. Anuência prévia como condição de procedibilidade
A subsequente averbação da mudança do prenome e do gênero no registro de nascimento dos descendentes da pessoa requerente dependerá da anuência deles quando relativamente capazes ou maiores, de ambos os pais (parágrafo 2º, artigo 8º), assim como a averbação da alteração do prenome e do gênero no registro de casamento dependerá da anuência do cônjuge (parágrafo 3º, artigo 8º).

Em relação ao registro de casamento, trata-se de assento que não é individual, lavrado sempre em nome de dois indivíduos, ambos ostentando a titularidade de direitos e deveres recíprocos perante a lei civil. É coerente que se aponte a necessidade de prévia anuência do consorte para a mudança dos caracteres individuais obrigatórios lançados anteriormente no registro. Rompido o vínculo pelo divórcio ou pelo óbito devidamente comprovado, não mais subsiste base jurídica para a exigência.

Importa frisar que, para a subsequente averbação da mudança do prenome e do gênero no registro de nascimento dos descendentes da pessoa requerente, valerá como pressuposto a anterior averbação no assento de casamento, evidenciando a manutenção de uma cadeia sequencial de atos civis obrigatórios por lei (princípio da continuidade registral). Os descendentes, ainda no caso de casamento civil de seus genitores, necessitam declarar sua anuência para a averbação do ato — mudança do gênero e prenome do pai ou da mãe — em seus assentos de nascimento, caso já maiores e capazes, dado que essa subsequente averbação não se opera de forma automática, pois alcança direito de terceiros.

14. Conclusão
Uma das causas da reconhecida explosão de demandas no Judiciário brasileiro tem sido a omissão do Poder Legislativo em enfrentar temas espinhosos que eventualmente desagrade a setores consideráveis da sociedade e de grupos políticos com ascendência sobre as respectivas bancadas. À luz dessas anomalias, o debate democrático, próprio de uma sociedade plural e desigual, é subtraído de seu foro natural e deslocado ao Poder Judiciário em fenômeno que, por sua vez, favorece a deflagração de outra situação excepcional, matéria de debates entre estudiosos, denominada de ativismo judicial.

E o fato social, como se sabe, não espera a regulamentação legislativa, exigindo do magistrado a resposta do estado na tutela dos direitos invocados. O sistema de publicidade registral, formatado sob as diretrizes do notariado latino, tem por premissa maior a prevenção dos litígios na busca da segurança jurídica. A normativa, a par de bem intencionada, apresenta aspectos que merecem algum aperfeiçoamento.

O ponto de inflexão maior, talvez, seja marcado por sua temporalidade intrínseca, dado que se constata — e apenas se trata aqui de uma constatação, nada mais — que as democracias tradicionais dos países ocidentais do continente europeu e alguns estados norte-americanos claramente avançam para a institucionalização do gênero “neutro” nos assentos de nascimento, a esvaziar, com o passar do tempo, toda essa sorte de providências e dispêndios estatais inclusive no que diz respeito à necessidade de modificação dos prenomes.

Fonte: Consultor Jurídico

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