Quando o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) se tornou realidade em 2005, o Brasil avançava lentamente na consolidação de direitos para as pessoas com deficiência (PcDs). Duas décadas depois, o país progrediu ao criar instrumentos legais inclusivos, que levaram em consideração a diversidade desse grupo social, bem como suas dificuldades, e o CNJ participou ativamente desse processo. Políticas judiciárias impulsionaram mudanças nos tribunais brasileiros tanto para PcDs que compõem seus quadros quanto para aqueles que buscam inclusão e acessibilidade.
Atualmente, são mais de 18 milhões de pessoas com deficiência no Brasil. No último censo de 2023, realizado com dados da Pnad Contínua de 2022, é possível ter mais clareza do tamanho da exclusão que essas pessoas enfrentam. Elas têm os menores índices de escolaridade entre todos os grupos sociais investigados e baixas taxas de participação no mercado de trabalho. As estatísticas mostram que 29,2% dos PcDs estão empregadas enquanto, entre pessoas sem deficiência, o percentual é de 66,4% de inclusão laboral.
Em 2016, o CNJ editou a Resolução 230, um dos primeiros atos da administração pública a promover os preceitos da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU e da Lei de Inclusão da Pessoa com Deficiência. Uma das orientações ao Judiciário foi a criação de Comissões Permanentes de Acessibilidade e Inclusão, com incumbência de desenvolver projetos arquitetônicos de acessibilidade e capacitações do corpo funcional dos tribunais para o atendimento a PcDs.
Inicialmente, as ações deveriam atacar principalmente duas das seis barreiras definidas pela lei, enfrentadas pelas pessoas com deficiência: as barreiras arquitetônicas e as atitudinais. Além dessas, também existem barreiras nos transportes; nas comunicações e na informação; e na tecnologia.
As regras mobilizaram a Justiça para aprofundar o debate e ampliar o alcance de suas ações. Em 2021, a Resolução 401 convocou os tribunais a desenvolverem diretrizes para promover a inclusão e o funcionamento de unidades para o acolhimento de PcDs nos tribunais e conselhos de justiça.
A normativa foi atualizada por meio da Comissão Permanente de Sustentabilidade e Responsabilidade Social do CNJ com a participação dos tribunais brasileiros. Alguns tribunais, que já tinham um trabalho de inclusão, estruturaram de forma mais consistente suas ações, tanto para o público interno quanto para a sociedade em geral. Foram avanços para permitir o acesso físico e virtual aos serviços judiciários e oferecer linguagem mais adaptada a pessoas com necessidades diversas, entre outras medidas.
Ativismo
Influenciador e ativista, o pedagogo Ivan Baron, de 26 anos, transformou a luta pessoal em uma ampla bandeira identitária. Com paralisia cerebral, Ivan é autor do Guia Anticapacitista, que descontrói, com humor, ideias capacitistas, ou seja, preconceitos que se traduzem em tratamentos discriminatórios, práticas inadequadas, desinformação e até mesmo atos de violência.
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Ivan reforça que o primeiro passo para ir além das leis é fazer com que a sociedade enxergue os PcDs como pessoas. “Não somos apenas um CID (Classificação Internacional de Doenças) médico. Os leigos no assunto precisam conhecer quem nós somos, nossas reais necessidades e afinidades”, defendeu.
Para Ivan, que tem mais de meio milhão de seguidores em sua rede social, a grande barreira ainda é a falta de conscientização da sociedade. “É muito mais difícil mudar comportamentos e pensamentos de pessoas ignorantes do que colocar uma rampa em uma calçada”, exemplifica o rapaz.
Mercado de trabalho
A dificuldade para se inserir no mercado de trabalho e de avançar nos estudos formais não poupa pessoas com deficiência de nenhum grupo social específico e nem se encerra em uma determinada fase da vida. Desde que sofreu um acidente grave após mergulhar em uma cachoeira aos 16 anos, o procurador da República, Cláudio Drewes, não dorme uma noite inteira sem que tenha de acordar para algum cuidado terapêutico com o corpo.
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Tetraplégico, Drewes enfrentou oitos meses de internação na Unidade de Terapia Intensiva (UTI), chegando a morar um ano e meio em um hospital de Brasília especializado em problemas de mobilidade. “Os médicos falavam que eu não tinha muita chance, não queriam criar falsa expectativa. Meu pai me ajudou a não acreditar nisso”, lembra ele, que hoje tem 54 anos.
Quando se formou em Direito, Drewes viu suas chances de ingressar no serviço público diminuírem por órgãos da Justiça que o rejeitavam na fase de entrevistas. “Já havia a previsão legal, inaugurada pela Lei 8.112/1990, de reservar 5% das vagas para PcDs. Mas a prática era, e até hoje ainda é, pouco efetiva”, avalia. Ele defende condições reais para que a pessoa com deficiência não seja um espectador, mas, sim, um ator ativo na sociedade.
A despeito das tradicionais barreiras, o procurador tem um sonho: integrar o Superior Tribunal de Justiça (STJ). “Além da representatividade, é um estímulo para que milhares de pessoas não desistam de suas lutas. Não apenas aquelas com deficiência, mas todas que diariamente enfrentam seus desafios”, declarou.
Estigmas
A desinformação, antagonista dos mais diversos grupos de pessoas com deficiência, é particularmente nociva quando se trata dos portadores do Transtorno do Espetro Autista (TEA). Em abril do ano passado, o CNJ lançou o Protocolo Técnico de Interação, voltado para os profissionais da polícia judicial, que assegura um acolhimento humanizado das pessoas com TEA que procuram o Poder Judiciário. O objetivo é assegurar a inclusão e oferecer um atendimento respeitoso a esse público com limitações invisíveis.
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Portador do TEA, Américo Júnior acumula duas graduações aos 34 anos: Análise de Sistemas e Engenharia de Software. No entanto, a extensa formação não foi suficiente para garantir uma vaga no mercado de trabalho. “Quando recebi meu laudo, aos 12 anos, os autistas não tinham tantos direitos como hoje. A primeira psiquiatra que me atendeu não queria me dar um laudo de autista com receio de que fosse atrapalhar minha vida [em razão do estigma]”, disse.
Américo passou em dois concursos temporários para docente, mas, após o primeiro ano de trabalho, mesmo com possibilidade de renovação por igual período, foi dispensado. “A verdade é que eu sou normal demais para ser autista e estranho demais para ser normal”, ponderou.
Hoje, Américo é voluntário na Associação Brasileira de Autismo Comportamento e Intervenção (Abraci). Administrada por um grupo de pais e mães de crianças com autismo, a entidade conta com 220 associados que recebem atendimento e uma fila de mais de 180 famílias de baixa renda que aguardam apadrinhamento para terem acesso às terapias.
A taxa para cada família associada é de R$ 250 mensais para cobrir os custos do tratamento. Porém, para algumas famílias, o valor é impeditivo. A solução encontrada foi abrir para a sociedade a possibilidade de apadrinhamento de crianças autistas de baixa renda ou em situação de vulnerabilidade. Na entidade, as crianças, os jovens e até mesmo adultos têm acesso à terapia de Análise do Comportamento Aplicada (ABA).
O preconceito é agravado pela falta de suporte adequado na rede pública, judicialização de negativas do tratamento pela rede particular e dificuldade em conseguir o Benefício de Prestação Continuada (BPC), concedido pelo Instituto de Seguridade Social.
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Esse foi o caso de Marina Camargo, mãe de quatro filhos: um deles recebeu o diagnóstico de TEA aos dois anos e oito meses. Hoje, a criança tem nove anos. “Fiquei desesperada, depressiva e me senti sozinha, pois ouvi do pai dele que eu estava inventando doença para a criança. Saí do meu emprego para me dedicar integralmente ao meu filho. O BPC foi aprovado somente há três anos, quando ele tinha seis anos de idade”, lamentou.
Previsto no artigo 203, inciso V, da Constituição Federal, o BPC é um direito assegurado a idosos e deficientes de baixa renda que atende, atualmente, a 4,7 milhões de beneficiários, conforme dados do Portal da Transparência. Em 2024, os tribunais brasileiros receberam 720.570 novos processos relacionados ao BPC para pessoas com deficiência. Desse total, os tribunais regionais federais da 5.ª Região e da 1.ª Região, com jurisdição em dezenove estados brasileiros do Nordeste, do Centro-Oeste e do Sudeste, são mais de 475 mil processos.
Fonte: CNJ