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Previsibilidade, segurança jurídica e proteção da propriedade imobiliária

Previsibilidade segurança jurídica e proteção da propriedade imobiliária

Patricia André de Camargo Ferraz

O sistema registral imobiliário brasileiro é um dos melhores do mundo. Está alinhado tecnicamente com os sistemas de registro de direitos do Reino Unido, Espanha, Japão, Emirados Árabes, Alemanha, Portugal e Chile, por exemplo. Assim como tais sistemas, teve sua origem normativa em meados do século XIX, com uma finalidade eminentemente econômica: dar publicidade às hipotecas incidentes sobre bens imóveis, para garantia dos prestamistas e, reflexamente, para permitir o desenvolvimento econômico, aperfeiçoando a segunda fase da história do crédito: a do crédito privado para produção. 

Os sistemas de registro de direitos referidos, assim como o nosso, foram aperfeiçoados ao longo do século XX e neste século XXI para, atualmente, mais do que cumprirem sua missão original, constituírem, publicarem e protegerem variados direitos reais, dentre eles, o direito de propriedade. Hodiernamente, aquela finalidade econômica de garantia do crédito imobiliário para a produção foi estendida para garantir o crédito para pessoas físicas (a terceira fase da história do crédito). 

Essa finalidade multifacetária, mostra, a princípio e de modo proeminente, o cariz jurídico do Registro de Imóveis: a proteção da propriedade imobiliária. O direito de propriedade é um dos direitos cravados na Declaração dos Direitos Humanos, cerne do PIDESC – Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, e um dos direitos fundamentais declarados pelo Art. 5º da Constituição Federal do Brasil. 

A propriedade imobiliária é a base fundamental de qualquer economia moderna e livre, na medida em que seu potencial econômico pode ser utilizado para a distribuição de riquezas, na forma de ativo econômico, como garantia a empréstimos e financiamentos. Empréstimos e financiamentos com garantia real imobiliária são contratados com taxas de juros muito menores do que aquelas incidentes em mútuos contratados com garantias pessoais. Portanto, o Registro de Imóveis, micro sistema que o constitui, transfere, extingue e protege, tem importância econômica evidente.

A qualidade de nosso Registro de Imóveis, contudo, não decorre de mérito exclusivamente seu. É fruto de um concerto institucional equilibrado que envolve, a começar, os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, cada um em sua esfera de atuação, além do próprio Registro de Imóveis.

Por isso, neste pequeno texto, me referirei ao micro sistema de proteção da propriedade imobiliária como Registro de Imóveis. E utilizarei  a expressão macro sistema de proteção da propriedade imobiliária, ou macro sistema, para indicar o sistema de proteção da propriedade imobiliária, quando compreendidos o Registro de Imóveis e os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.

Na galáxia institucional, o equilíbrio e o respeito entre os organismos que dela fazem parte é essencial para o adequado funcionamento de todos eles. Pouco valeriam todas regras constitucionais que estruturam o Registro de Imóveis ou mesmo as regras de segurança jurídica que o norteiam se essa estrutura não fosse reconhecida e respeitada pelo Poder Judiciário em suas decisões, ou se sofresse ingerências políticas do Poder Executivo, ou fosse alvejada por diplomas legais contraditórios. 

Imaginemos, por exemplo, uma venda e compra que observasse rigorosamente todos os requisitos legais e estivesse já registrada na matrícula pertinente, de modo a atribuir a propriedade de determinado imóvel ao respectivo adquirente. Imaginemos, agora, se esta venda e compra fosse desconsiderada por uma decisão judicial que afastasse o direito de propriedade do seu titular declarado pelo Registro em benefício de um contrato particular não registrado, em evidente descumprimento do previsto no Art. 169, da Lei nº 6.015/73. 

Imaginemos outra situação: uma penhora, originada em uma liquidação de sentença em que fossem partes A e B e que essa penhora tivesse como objeto imóvel de C. Imaginemos que C não fosse parte na ação, que não houvesse qualquer motivo jurídico que demonstrasse que C estabelecera alguma relação com a obrigação em execução ou que C sequer fora cientificado no processo respectivo. 

Sejamos ainda mais criativos: pensemos em uma garantia real executada judicial ou extrajudicialmente sem que tenha havido inadimplemento por parte do devedor. 

E por fim, pensemos na edição de decreto por um prefeito declarando que a propriedade de dado imóvel não cabe ao titular do domínio declarado pelo Registro de Imóveis, mas a um correligionário seu. 

Todos esses exemplos, propositadamente exóticos, são aqui trazidos para indicarmos de modo mais evidente o que a inobservância da lei e dos contratos (ou seja, uma aplicação ou interpretação da lei ou dos contratos de modo não previsível, fora da lei ou em desacordo com sua finalidade) pode provocar no caso concreto, para os envolvidos e, de uma perspectiva sistêmica, para a ordem institucional. O resultado seria a perplexidade. 

Acaso reconhecida a propriedade de um imóvel em favor de um contratante que não registrou seu contrato, em detrimento daquele que cumpriu a lei registrou seu título aquisitivo na matrícula respectiva; ou uma penhora recair sobre o imóvel de alguém que não fez parte da lide; ou um prefeito desconsiderar o direito de propriedade regularmente constituído para entregá-la a algum correligionário. Ou uma alienação fiduciária ser executada sem que houvesse inadimplemento. Esses são casos que nos deixariam estupefatos. E inseguros.

 O sistema de proteção da propriedade imobiliária não foge desta regra: a atuação equilibrada das instituições envolvidas em dado sistema, e tal como previsto no ordenamento jurídico, confere aos agentes públicos e aos atores privados previsibilidade, ou seja, a percepção e certeza a todos os envolvidos em dada situação que, agindo na forma da lei e atendendo sua finalidade, farão produzir determinados efeitos. 

A previsibilidade é elemento fundamental para a segurança jurídica, ou nas palavras de  Joseph Délos, para a “[…] garantia dada ao indivíduo de que sua pessoa, seus bens e seus direitos não serão objeto de ataques violentos, ou de que, se esses ataques vierem a produzir-se, a sociedade lhe assegurará proteção e reparação.” 

Não é por acaso, portanto, que a palavra de ordem, no momento, é a previsibilidade. É ela que clarifica a noção de segurança jurídica para cidadãos, profissionais do direito, agentes estatais, mercado e investidores externos. 

É exatamente a necessidade de previsibilidade na atuação do macro sistema que tem demandado, por exemplo, a padronização de interpretação e de procedimentos por parte dos Registradores de Imóveis, inclusive por meio de auto regulação; de padronização das normas de serviço extrajudicial editadas pelas Corregedorias Gerais de Justiça dos Estados e Distrito Federal (aquelas que regem as atividades extrajudiciais, dentre elas, a do Registro de Imóveis); e a edição de leis federais que atualizem o exercício da função registral. 

A demanda por previsibilidade é também o mote para debates acerca de decisões administrativas e jurisdicionais que encontram entre o branco e o preto, além de matizes do cinza, inusitados tons vermelhos. 

A economia gira a partir da realização de negócios, dentre os quais, a contratação de crédito por meio de mútuos: empréstimos e financiamentos. E as pessoas em geral, físicas e jurídicas, precisam de previsibilidade e segurança para negociar, comprar, vendar, emprestar e investir. Precisam da certeza de que o que comprarem, receberão. De que quando venderem e entregarem, receberão o avençado. De que quando emprestarem, reaverão o principal, mais os acréscimos ajustados. De que quando investirem, mantidas as condições previstas, receberão o capital, mais o lucro. Maior a segurança sistêmica, maior a agilidade dos negócios, a circulação do dinheiro, o número de negócios realizados, a economia e o número de empregos gerados.

Toda atividade humana envolve algum grau de risco, mas o risco das atividades negociais está na impossibilidade de prever o futuro, ou seja, de antever situações que alterem as condições inicialmente verificadas e que eram propícias à realização de determinado negócio, ou seja, a álea. O risco envolve, portanto, chances de lucro e de prejuízo. E é a assunção do risco negocial que justifica a expectativa do negociante de obter lucro: ele investe com esta perspectiva. O risco, contudo, não pode ser jurídico, ou seja, não pode compreender decisões administrativas ou jurisdicionais que criem o direito, ainda que interpretando-o, para alterar ad hoc as regras incidentes no caso concreto.  

Voltemos, então, aos exóticos exemplos. A depender da quantidade de repetição de cada um deles ou da instância onde ocorrerem, cada um deles têm o potencial de arranhar a reputação do sistema de proteção da propriedade; de início, maculando a higidez do micro sistema, e em seguida, comprometendo a eficácia do macro sistema de proteção da propriedade imobiliária. Mais do que isso, a falta de previsibilidade que elas representam geraria insegurança jurídica e, com ela, maiores custos transacionais por parte dos envolvidos nos negócios subsequentes. 

Isso porque a insegurança naturalmente provoca nas partes envolvidas em determinado negócio a necessidade de busca por mais eficientes mecanismos assecuratórios em caso de inadimplemento da parte contrária, assim como por mecanismos de proteção contra eventuais investidas ilícitas dos contratantes ou de terceiros. Não é só. A busca por outros meios assecuratórios demanda tempo. E a morosidade assolaria a realização de negócios. 

Não fossem esses efeitos adversos suficientes para nos alertar o espírito, haveria ainda teria uma outra consequência deletéria: o estímulo a fraudes por meio dos sistemas registral e judicial. Assim porque um sistema que não é respeitado pode ser aviltado, posto em suspeita. O mal pagador, o fraudador e o procrastinador não teriam constrangimento algum em, por exemplo, agitarem demandas calcadas em argumentos insubsistentes e que fossem contrários ao publicado pelo Registro de Imóveis.

A consequência seguinte seria o enfraquecimento dos direitos constituídos e publicados pelo micro sistema. E o efeito posterior, o engessamento econômico. O derradeiro, a dramática redução da capacidade das malhas institucionais pública e privada de distribuírem riqueza ou de garantirem acesso a meios de obtenção de riqueza.  

Vamos ajustar a lente para focarmos um pouco mais no crédito imobiliário, um dos mais eficientes e menos custosos meios de distribuição de riqueza. 

Sem um respeitado macro sistema de proteção da propriedade, o crédito imobiliário mingua. Já vimos claramente isso ocorrer nas décadas de 80 e 90, com o crédito habitacional. Naquela oportunidade, as hipotecas garantidoras de financiamentos habitacionais tiveram seus efeitos reduzidos a zero ou algo perto disso. Os que mais sofreram os efeitos de falta de previsibilidade que ali se experimentou foram as pessoas economicamente menos favorecidas do país. Sem crédito habitacional não havia opção de acesso à moradia e por isso testemunhamos a explosão da irregularidade fundiária, das favelas, o embotamento da construção civil, o empobrecimento do mercado. Infelizmente este não é o único exemplo.

Neste momento, em que o país conta 13.000.000 de desempregados, não podemos nos dar ao luxo de ignorarmos os ensinamentos que a economia e a realidade nos deram, nem de deixarmos de fazer nossas lições de casa. 

Por isso, a previsibilidade e segurança jurídica assumem destaque e nos impõem uma reflexão ainda mais profunda que a costumeira a respeito dos casos que nos são submetidos cotidianamente. 

Sem tê-las sempre presentes, não teremos condições de cumprir o art. 3º da Constituição Federal, que estabelece como objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; e promover o bem de todos.

É preciso adotar uma perspectiva ainda mais ampla e prudente antes de decidir.

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