A decisão emblemática do CNJ pode influenciar um futuro ato regulatório da Corregedoria Nacional de Justiça sobre a instrumentalização de negócios imobiliários sob a garantia fiduciária.
Uma importante caraterística do direito moderno é a atribuição de diferentes formas ou formalidades a determinados atos a depender da importância destes dentro do ecossistema social, no qual esses atos desenvolverão seus efeitos1. Nesse contexto, importante e atual debate no Brasil sobre o tema, encontramos no requisito da forma nas operações de alienação fiduciária imobiliária, em especial na interpretação conferida aos artigos 222 e 383 da lei 9.514/97, reguladora do Sistema Financeiro Imobiliário (SFI) trazido pela decisão do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) no mês de agosto deste ano.
De forma didática, o ponto central da discussão que envolve a interpretação da Lei 9.514/97 é se qualquer pessoa poderia celebrar um contrato particular, garantido por alienação fiduciária de bem imóvel, que lhe alçaria, em decorrência de tal garantia, à figura do “instrumento particular com força de escritura pública”. Nesse ponto, poderia-se levantar a seguinte questão: poderiam dois cidadãos, sem especialização jurídica ou competência atribuída constitucionalmente, se valer de uma minuta de contrato particular que encontraram, por exemplo, na internet para transferir um bem imóvel como uma casa, apenas pelo fato de que em algum ponto do modelo disponibilizado há uma tal “alienação fiduciária”?
Quanto à interpretação do artigo 22, não há grande celeuma, pois este autoriza qualquer credor, pessoa física ou jurídica, integrante ou não do Sistema Financeiro, a se valer do instituto da alienação fiduciária para garantir sua dívida4. A controvérsia, porém, encontra-se no artigo 38, que define a forma ou formalidade para “os contratos previstos nesta lei”, autorizando, enquanto forma, tanto a escritura pública, quanto o instrumento particular com efeitos de escritura pública.
Duas são as interpretações possíveis diante da redação dos referidos artigos: Uma primeira hipotética (controversa) interpretação seria de que qualquer pessoa física ou jurídica, integrante ou não do Sistema Financeiro, teria atribuição para lavrar instrumento particular com efeito de escritura pública (!), bastando, para tanto, que o contrato principal esteja acompanhado de uma garantia acessória constituída justamente pela alienação fiduciária, amplamente utilizável por qualquer pessoa nos termos do art. 225. A segunda, e que reputo mais correta, é a de que não há um vinculo hermenêutico entre o art. 38 e o art. 22. Do ponto de vista dogmático, seria um contrassenso que a garantia acessória, pudesse alterar os requisitos de forma do principal, por exemplo, uma compra e venda. Em outras palavras, a garantia fiduciária de imóveis poderia ser utilizada por qualquer sujeito, mas a forma particular com efeitos de escritura pública alcançaria apenas e tão somente os contratos firmados no âmbito da própria lei, ou seja, dentro do Sistema Financeiro Imobiliário. Essa circunscrição legal limitaria seu uso aos agentes que o integram como por exemplo caixas econômicas, bancos comerciais, bancos de investimento, bancos com carteira de crédito imobiliário, sociedades de crédito imobiliário, associações de poupança e empréstimo, companhias hipotecárias e outras entidades, previstas no art. 2º da lei.
Justamente essa questão foi analisada recentemente pelo Conselho Nacional de Justiça no Procedimento de Controle Administrativo 0000145-56.2018.2.00.0000 que visou suspender a eficácia do Provimento nº. 345/2017, alterado pelo Provimento nº. 93/2020 da Corregedoria Geral do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Após anos de tramitação o feito foi decidido em definitivo em agosto de 2023. Na sessão de julgamento realizada no dia 09, os Conselheiros, por unanimidade de votos, julgaram o pedido improcedente. O pleito dos requerentes pautou-se pela suposta falta de fundamento jurídico para limitar às pessoas jurídicas integrantes do Sistema Financeiro Imobiliário (SFI), cooperativas de crédito e administradoras de consórcio de imóveis possam celebrar alienação fiduciária por instrumento particular com efeitos de escritura pública.
A decisão proferida parece conferir assim uma solução mais sistemática considerando o cenário legislado existente e acima de tudo balizando e concretizando uma maior segurança jurídica para as relações de compra e venda de bens imóveis. Para melhor compreensão do tema, importa recordar que a Lei do SFI (9.514) faz parte do sistema jurídico do crédito imobiliário que tem a lei nº. 4.830/64 como precursora e que criou o Sistema Financeiro da Habitação (SFH). Foi justamente esta lei quem criou a formula “instrumentos particulares com força de escritura pública6.
Aqui, cabe desenvolver a razão maior que justifica a possibilidade de os integrantes do SFI/SFH elaborarem instrumentos particulares com força de escritura pública. E essa justificativa se encontra no plano regulatório: Os integrantes do SFI/SFH são extremamente regulados pelo Banco Central e diversos outros órgãos governamentais. Dentro deste âmbito regulado, busca-se a construção de cadeias de relações orientadas pela dinamicidade, segurança e imparcialidade como base para liberação do crédito financeiro. Vale ressaltar que a dimensão da imparcialidade é central na construção do design regulatório em questão: a atribuição do “efeito de escritura pública” próprio e exclusivo aos instrumentos particulares do SFH/SFI decorre justamente do fato dessas entidades não atuarem no momento da compra e venda, mas, sim, no momento da garantia. Aqui há uma separação de dois ecossistemas: um da relação econômica individual e outro ecossistema que confere suporte econômico-estabilizador da relação por meio do sistema de garantias.
Vale dizer, para a instituição financeira importa mais a própria alienação fiduciária do que a compra e venda, sendo, a princípio, agnóstica em relação aos termos desta última7. A sua participação no negócio é apenas e tão somente como terceiro a liberar o crédito e receber o bem em garantia. Agem assim, em relação aos contratos que operacionalizam, como verdadeiro terceiro imparcial, tal como o Tabelião de notas, conferindo suporte seguro, neutro e apartidário à relações complexas e dinâmicas da sociedade.
Aqui reside uma importante diferença de natureza jurídico-social8 e regulatória entre as referidas instituições integrantes do SFI/SFH de outros partícipes do mercado propriamente imobiliário, como, por exemplo, construtoras e loteadoras, advogados, imobiliárias etc. Não somente a atuação é diversa, mas também a função desempenhada por cada um na estruturação das relações privadas em questão. Enquanto que as instituições integrantes do SFI/SFH se posicionam como terceiro imparcial perante o contrato de compra e venda na forma de um garantidor da viabilidade da relação econômica, construtoras e loteadoras, advogados, imobiliárias etc. criam uma relação simbiótica sem imparcialidade vivadas em questão visto que celebrarem a compra e venda com alienação fiduciária, sendo assim partes interessadas especialmente nas condições da própria compra e venda. A imparcialidade estruturante desse tipo de relação é contaminada pela indiferença entre interesses na própria alienação fiduciária e interesses no próprio contrato de compra e venda. A consequência dessa falta de parcialidade é refletida no consequente aumento de insegurança nas relações e também no volume de fraudes contratuais.
Nesse sentido, fora do microssistema SFH/SFI deve prevalecer a regra geral do Código Civil em vigor, art. 104, III, que indica necessidade de forma prescrita ou não defesa em lei para a validade dos negócios jurídicos, que deve ser lido em conjunto com o art. 108 do mesmo diploma que informa que não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial para os negócios jurídicos imobiliários. A hermenêutica jurídica indica que as normas gerais, como as do Código Civil, somente podem ser afastadas em hipóteses excepcionais previstas em lei. Como bem indicado pelo Conselheiro Marcello Terto e Silva quando do julgamento da questão perante o Conselho Nacional de Justiça há: “conflito aparente de normas: a geral do Código Civil e a especial que trata dos contratos do sistema financeiro e imobiliário, o SFI e as regras são muito claras . “9
Aqui nota-se uma clara dinâmica de micro sistemas com racionalidades próprias já estruturados como na seara consumerista, na proteção às crianças e aos adolescentes, entre outros. Criou-se com a edição das Leis do SFH e do SFI um microssistema de direito civil próprio que busca regular situações específicas, com elevado grau de complexidade10 que difere do regime geral mas que nao pode ser estendido arbitrariamente para além do microsistema. Seria como expandir a racionalidade consumerista para outros âmbitos não consumerista. A exceção à regra geral parece ser sempre pontual e realizada em um ambiente controlável, exatamente o que ocorre no microssistema do SFI em que seus agentes podem sofrem sanções por descumprimento de deveres legais. Dessa forma, a ausência do Estado na figura do notário é aceitável porque se trata de uma sistemática padronizada, cuja segurança jurídica e econômica está, justamente, dentro de um microssistema supervisionado por outras instituições reguladoras. Fora do microssistema, por sua vez, levaria inexoravelmente a um crescente volume de fraudes e à judicialização de contratos desiguais por falta de requisitos legais que confiram segurança jurídica a atos imobiliários.
Como destacado pelo Conselheiro Mauro Martins durante o julgamento supramencionado do CNJ, a delimitação do uso de instrumento particular com força de escritura pública apenas aos agentes que integram o SFI protege os hipossuficientes e atende o interesse público. Em nosso entendimento, demonstra compreensão e respeito à estrutura legislativa nacional que convive com regras gerais previstas nos diplomas de base e se aplicam para parcela majoritária das relações jurídicas, e com regras especiais para relações específicas, como as que regem o SFI11.
A emblemática e coerente decisão do CNJ pode sinalizar um norte para futuro ato regulatório a ser editado pela Corregedoria Nacional de Justiça sobre o tema, como indicado pelo Corregedor Nacional de Justiça. Há, nesse contexto, uma oportunidade ímpar de se evitar que a instrumentalização de negócios que envolvam bens imóveis seja banalizada sob o argumento da existência da garantia fiduciária, como se essa garantia pudesse, pela sua mera previsão contratual, transmutar requisitos legais da forma.
1 O direito privado alemão moderno “desformalizou” sobretudo o direito das obrigações. Atualmente, no direito das obrigações vigora em regra o princípio da liberdade de forma. Entretanto, noutros domínios do direito privado – direito da família, direito das sucessões ou direito de propriedade ou das coisas – as questões de forma mantiveram um estatuto mais elevado, o que está particularmente relacionado com o fato de nestes domínios a ideia de publicidade de um ato jurídico/negócio jurídico desempenhar um papel especial. Isto porque, muitas vezes, não se trata apenas de garantir o ato jurídico concreto em si, mas também o seu significado para terceiros ou seja garantir um ecossistema protegido de relações complexas e dependentes entre si.
2 Art. 22. A alienação fiduciária regulada por esta Lei é o negócio jurídico pelo qual o devedor, ou fiduciante, com o escopo de garantia, contrata a transferência ao credor, ou fiduciário, da propriedade resolúvel de coisa imóvel.
§ 1o A alienação fiduciária poderá ser contratada por pessoa física ou jurídica, não sendo privativa das entidades que operam no SFI, podendo ter como objeto, além da propriedade plena: (…)
3 Art. 38. Os atos e contratos referidos nesta Lei ou resultantes da sua aplicação, mesmo aqueles que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis, poderão ser celebrados por escritura pública ou por instrumento particular com efeitos de escritura pública.
4 Sobre o instituto, ver a analise comparada dos sistemas brasileiro, alemão e inglês Mark Aschenbrenner, Die Sicherungsu¨bereignung im deutschen, englischen und brasilianischen Recht, Mohr Siebeck 2015, p. 149 e ss.
5 Para fins da primeira interpretação alguns pontos na natureza do regime jurídico em questão já denotam sua fragilidade. Primeiramente, o “efeito de escritura pública” é próprio e exclusivo do microssistema SFI por um importante motivo: construção de posições imparciais que fomentam um fluxo continuo e moderno de proteção ao crédito e propriedade. Em outros palavras, o SFI atua em atos e processos de compra e vendas garantidas por alienação fiduciária como terceiro imparcial, tal como o Tabelião de notas. A sua participação no negócio é apenas e tão somente como terceiro a liberar o crédito e receber o bem em garantia, mas nunca como interessado.
6 Art. 61. Para plena consecução do disposto no artigo anterior, as escrituras deverão consignar exclusivamente as cláusulas, têrmos ou condições variáveis ou específicas.
§ 5º Os contratos de que forem parte o Banco Nacional de Habitação ou entidades que integrem o Sistema Financeiro da Habitação, bem como as operações efetuadas por determinação da presente Lei, poderão ser celebrados por instrumento particular, os quais poderão ser impressos, não se aplicando aos mesmos as disposições do art. 134, II, do Código Civil, atribuindo-se o caráter de escritura pública, para todos os fins de direito, aos contratos particulares firmados pelas entidades acima citados até a data da publicação desta Lei.
7 Na relação jurídica em tela, a alienação fiduciária é o contrato principal, quando a compra e venda lhe é acessória. Há uma clara dicotomia entre principal/assessório nesse caso. Em regra geral, a compra e venda é principal e a alienação fiduciário é acessória. No microssistema aqui elucidado do SFI ocorre justamente o contrário.
8 É característica a forma como são apresentados os mesmos bens imóveis nos resultados das diferentes instituições. Enquanto para as instituições financeiras o imóvel dado em garantia aparece como colateral nas operações de crédito, sendo visto como um ativo positivo, muitas vezes a melhor garantia possível dentro do mercado de crédito, para as construtoras e loteadoras o imóvel é um “estoque”, que deve ser vendido nas melhores condições de preço a depender do mercado. A natureza jurídico-social de cada uma delas deve ser levada em consideração na modelagem da atribuição de determinadas formalidades.
9 Cabe realçar que o micro Sistema do SFI/SFH possui regra própria que admitem que eles lavrem instrumento particular com força de escritura pública. Na interpretação sistematica fica evidente que o artigo 38 referiu-se a este instrumento, visto que – em sua redação original – ele expressamente afastava a regra do artigo 134 (atual 108).
10 TEPEDINO, Gustavo. O Co’digo Civil, os chamados microssistemas e Constituic¸a~o: premissas para uma reforma legislativa. In Problemas de Direito Civil. Sa~o Paulo: Ed. Renovar, 2001. AZEVEDO, Ju’lio Camardo de. O Microssistema de Processo Coletivo Brasileiro: uma ana’lise feita a` luz das tende^ncias codificadoras. In: Revista Juri’dica da Escola Superior do Ministe’rio Pu’blico do Estado de Sa~o Paulo, 2012, v. 2.
11 Vale frisar que o caso em concreto decidido pelo CNJ envolve uma empresa com grande capacidade econômica que explora o mercado de combustíveis fosseis, ou seja, não buscava segurança jurídica, mas tão somente tentar se valer da excepcionalidade da Lei para esquivar-se da forma pública. A decisão em sentido contrário não geraria qualquer aproveitamento ao interesse público, apenas beneficiaria uma estrutura privada e, por consequencia, abriria um precedente de alto risco para o mercado imobiliário brasileiro, especialmente por reduzir, a longo prazo, a confiança no crédito imobiliário, já que este poderia passar a ser lastreado em contratos particulares garantidos por alienações fiduciárias vazias.
Fonte: Migalhas