Análise dos limites jurídicos da recusa de atos notariais e registrais, destacando quando ela protege a legalidade e quando gera responsabilidade civil por omissão injustificada.
Introdução – Quando o cartório diz não: a recusa como proteção ou risco jurídico?
O poder de dizer “não” é, talvez, uma das prerrogativas mais delicadas atribuídas aos notários e registradores. Investidos da fé pública, esses agentes não apenas formalizam atos jurídicos: exercem, também, um papel de filtro de legalidade, impedindo que o ordenamento seja contaminado por títulos inválidos, vícios formais ou transações juridicamente duvidosas.
Mas o mesmo poder de recusar que protege o sistema pode, se mal exercido, prejudicar diretamente o cidadão. Quando a negativa é infundada, genérica ou baseada em interpretações excessivamente restritivas, o que era para ser um ato de cautela se converte em fator de lesão patrimonial e frustração de direitos legítimos. E nesses casos, o que se coloca em discussão é a responsabilidade civil do delegatário extrajudicial.
O desafio, portanto, está em identificar onde termina a obrigação de resguardar a legalidade e onde começa a omissão que gera dever de indenizar. Afinal, a recusa não pode ser um escudo contra o medo de decidir – ela exige motivação, razoabilidade e, acima de tudo, alinhamento com os princípios que regem a atividade notarial e registral.
Este artigo analisa, à luz da doutrina e da jurisprudência, os limites jurídicos da recusa de atos, seus fundamentos legítimos, os riscos de negativa indevida e as consequências jurídicas – inclusive reparatórias – da omissão cartorial em situações de abuso, descaso ou excesso de zelo.
Quando a recusa é legítima – o dever de proteger o ordenamento
Nem toda recusa é negativa. Ao contrário: negar a prática de um ato incompatível com o ordenamento jurídico é dever funcional do notário e do registrador. O art. 28 da lei 8.935/1994 é claro ao estabelecer que o delegatário responde por “todos os atos que praticar, ou deixar de praticar, com dolo ou culpa”. E, se praticar ato contrário à lei, responde duplamente: disciplinar e civilmente.
A recusa, portanto, não é apenas autorizada – ela é obrigatória quando o título:
contiver vícios formais insanáveis;
violar princípios registrais (continuidade, especialidade subjetiva ou objetiva, legalidade, etc.);
envolver nulidade manifesta ou afronta direta à legislação vigente;
carecer de documentos essenciais à sua qualificação;
representar tentativa de fraude ou simulação contratual.
Exigir conformidade com o direito positivo não é excesso de zelo – é cumprimento de dever legal. A jurisprudência, inclusive, tem reconhecido que a recusa devidamente fundamentada constitui ato legítimo de proteção ao sistema jurídico, e não abuso ou omissão.
Exemplo prático: recusa ao registro de contrato de promessa de compra e venda com cláusulas omissas quanto à individualização do imóvel. Ainda que o ato tenha valor patrimonial para as partes, sem especialidade objetiva, não se registra. Ponto.
Mas – e isso é crucial – essa recusa deve ser fundamentada de forma clara, escrita e precisa, permitindo ao interessado, se desejar, o contraditório via suscitação de dúvida ou via judicial. A autoridade do cartório não é arbitrária: é técnica, motivada e controlável.
Quando a recusa ultrapassa o razoável – omissão com impacto jurídico e moral
Se o dever de recusar protege o sistema, o excesso de recusa ou a omissão em praticar o ato pode destruí-lo por dentro. E é aí que nasce a responsabilidade civil do delegatário: não por ter dito “não”, mas por ter dito sem base jurídica, sem clareza, ou – pior – sem dizer nada.
A recusa se torna abusiva quando:
não apresenta fundamentação concreta, limitando-se a fórmulas genéricas como “não atende aos requisitos legais”;
exige documentos irrelevantes ou desnecessários, em desacordo com a prática consolidada ou orientações normativas;
interpreta a lei de forma extremada ou isolada, criando obstáculos que nem o Judiciário sustenta;
posterga o exame do título por prazos incompatíveis com a urgência do ato, gerando prejuízos econômicos reais.
Exemplo clássico: negativa imotivada de lavratura de escritura pública de inventário extrajudicial com todos os requisitos preenchidos, exigindo inventário judicial sem justificativa legal. Resultado? Prejuízo patrimonial, atraso na partilha, bloqueio de bens – e ação por danos morais no lombo do cartório.
A jurisprudência já começa a reconhecer que a omissão cartorial não pode ser disfarçada de zelo técnico. Quando o ato é viável, e a recusa não se sustenta juridicamente, o que se configura é ato ilícito por omissão – especialmente grave em casos que envolvam:
perdas de oportunidade (ex.: prazos para negócios imobiliários);
bloqueio indevido de direitos sucessórios;
negativa infundada de reconhecimento de paternidade ou lavratura de testamento.
A fé pública não é escudo para inércia. Se o notário/registrador erra ao praticar o ato, responde. Se erra por deixar de praticá-lo sem base legal, responde também.
A responsabilidade civil do delegatário – quando a omissão vira dever de indenizar
A atividade notarial e registral, embora exercida em caráter privado, é uma função pública delegada pelo Estado. Por isso, aplica-se a esses agentes o regime de responsabilidade previsto no art. 37, §6º, da Constituição Federal, sob a lógica do risco administrativo: havendo dano decorrente da prestação do serviço, o dever de indenizar nasce independentemente de culpa – bastando a comprovação do nexo entre a conduta omissiva ou comissiva e o prejuízo causado.
No plano infraconstitucional, o art. 22 da lei 8.935/94 reforça:
“Os notários e registradores são civilmente responsáveis pelos danos que eles, seus prepostos e empregados causarem a terceiros, por culpa ou dolo.”
Ou seja, quando a recusa indevida ou omissão infundada causa prejuízo ao usuário, o cartório responde – e pode responder de forma solidária com o Estado, a depender do entendimento judicial aplicado ao caso.
Critérios de configuração da responsabilidade:
Conduta omissiva ou negativa injustificada, com violação do dever de diligência;
Dano efetivo ao usuário: material (ex.: perda de negócio, bloqueio patrimonial) ou moral (ex.: violação à dignidade, frustração de direito existencial);
Nexo causal claro entre a negativa do ato e o prejuízo sofrido;
Ausência de fundamento legal razoável para a recusa, verificada à luz da doutrina, jurisprudência ou regulamentações normativas.
Importante: não se trata de punir a divergência interpretativa de boa-fé. O que gera responsabilidade é a inércia travestida de zelo, a negativa genérica e a falta de motivação concreta que impeça o exercício regular de direitos pelo cidadão.
A recusa motivada e juridicamente sustentável é sempre legítima. Mas a recusa imotivada, desproporcional ou arbitrária rompe com o dever de eficiência e boa-fé administrativa – e, nesses casos, o delegatário responde como qualquer outro prestador de serviço público.
A jurisprudência fala – quando a recusa cartorial se torna indenizável
A atuação do registrador ou notário é, por definição, técnica e vinculada à legalidade. Porém, essa atuação não está imune ao controle jurisdicional – especialmente quando a recusa extrapola os limites do razoável ou se dá de forma genérica, infundada ou com abuso interpretativo. Os tribunais vêm delimitando, com clareza crescente, o que é proteção da legalidade e o que é omissão com impacto indenizável. A seguir, alguns exemplos concretos:
Indisponibilidade judicial inviabiliza averbação com cláusula de preferência – recusa legítima
TJDFT – Acórdão 1825469 (0708810-03.2023.8.07.0015)
O registro e a averbação de contrato de locação foram negados devido à averbação de indisponibilidade judicial sobre o imóvel.
O Tribunal reconheceu a licitude da recusa, afirmando que cláusulas oponíveis a terceiros (vigência e preferência) não podem ser averbadas enquanto perdurar a constrição judicial.
“Afigura-se lícita a negativa de efetivação do ato registral no ofício imobiliário em razão da indisponibilidade judicial.”
Memorial de incorporação utilizado como subterfúgio para desdobro informal – recusa legítima
TJDFT – Acórdão 1408691 (0705792-42.2021.8.07.0015)
Cartório recusou o registro de memorial de incorporação apresentado como tentativa indireta de desmembramento irregular de imóvel em copropriedade.
A negativa foi mantida, por violar a LC Distrital 950/19 e ausência de instrumento de mandato exigido pelo art. 32 da lei 4.591/1964.
“O memorial de incorporação, na forma como apresentado, configura tentativa de desdobro à revelia da legislação.”
Mandado de segurança contra negativa de registro – inadequação da via e ausência de liquidez
TJDFT – Acórdão 581828 (20100112277142APC)
Parte impetrou mandado de segurança contra negativa de registro de memorial de incorporação.
O Tribunal reconheceu que, dada a complexidade fática e a necessidade de prova, o mandado de segurança não era via adequada.
“A demanda, tendo em vista sua complexidade, exige dilação probatória, sendo inviável o uso do mandado de segurança.”
Responsabilidade civil por certidão imobiliária indevida – recusa omitida e dano reconhecido
STJ – AgInt nos EDcl no AREsp 797.090/CE
Oficial substituto expediu certidão negativa de registro imobiliário que posteriormente foi usada em ação de usucapião, prejudicando os verdadeiros proprietários.
O STJ reconheceu a possibilidade de responsabilidade civil do oficial, determinando retorno dos autos para aprofundamento da análise da culpa.
“Reconhecida a responsabilidade civil do oficial de registro substituto, em razão da emissão de certidão que ensejou prejuízo aos proprietários.”
Esses precedentes mostram que o Judiciário sabe diferenciar o zelo técnico da omissão injustificável. A fé pública, quando exercida com fundamento, é escudo; quando exercida com negligência ou excesso de formalismo, vira brecha para reparação civil.
Conclusão – Recusar exige coragem, mas também fundamento: quem tem a fé pública, tem que justificar o “não”
O cartório não é balcão de carimbos – é trincheira da legalidade. Mas essa missão não autoriza o delegatário a se esconder atrás da omissão ou do “excesso de zelo”. Dizer “não” exige responsabilidade técnica, mas também ousadia jurídica para decidir. Porque quem recusa sem base, responde. E responde pesado.
A recusa legítima protege o sistema. A recusa arbitrária paralisa direitos, causa prejuízos e corrói a confiança no serviço extrajudicial. O delegatário não é mero intérprete do Código Civil com medo de errar – é agente público investido da fé do Estado. E essa fé pública não combina com silêncio, dúvida crônica ou fuga de decisão.
A legitimidade do “não” está na motivação, na razoabilidade e no compromisso com o que é juridicamente defensável – não com o que é “mais seguro” por inércia. Porque a omissão, quando travestida de legalidade, também é ilícita. E nesse cenário, o cartório que falha, paga. Literalmente.
Portanto, o futuro do serviço notarial e registral não está no medo da responsabilização – está na valorização do bom profissional que recusa com base, que decide com clareza e que protege o ordenamento com coragem. Esse é o tabelião e o registrador que o século XXI exige.
Doutrina e legislação
BRASIL. Lei nº 8.935, de 18 de novembro de 1994. Regula os serviços notariais e de registro. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8935.htm. Acesso em: 10 jun. 2025.
BRASIL. Código Civil Brasileiro. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Art. 37, §6º.
RODRIGUES, Silvio. Direito Civil – Parte Geral. 40. ed. São Paulo: Saraiva, 2021.
OLIVEIRA, Carlos Fernando Mathias de Souza. Registros Públicos e Notariais. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade Civil. 17. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021.
Jurisprudência
TJDFT – Apelação Cível. Dúvida Registral. Indisponibilidade Judicial. Negativa Legítima.
Acórdão 1825469, Processo 0708810-03.2023.8.07.0015, Rel. Des. Lucimeire Maria da Silva, 5ª Turma Cível, j. 29/02/2024, DJe 14/03/2024.
A negativa de averbação de cláusulas contratuais em imóvel com indisponibilidade judicial foi considerada lícita.
TJDFT – Apelação Cível. Memorial de Incorporação. Desdobro Informal. Indisponibilidade.
Acórdão 1408691, Processo 0705792-42.2021.8.07.0015, Rel. Des. Robson Teixeira de Freitas, 8ª Turma Cível, j. 23/03/2022, DJe 31/03/2022.
Recusa justificada pela tentativa indireta de desmembramento irregular e ausência de poderes do incorporador.
TJDFT – Mandado de Segurança. Ato Registral. Inadequação da Via. Necessidade de Prova.
Acórdão 581828, Processo 20100112277142APC, Rel. Des. Ângelo Passareli, 5ª Turma Cível, j. 25/04/2012, DJe 27/04/2012.
Mandado de segurança não é via adequada para discutir ato registral que exige dilação probatória.
STJ – AgInt nos EDcl no AREsp 797.090/CE. Responsabilidade Civil de Oficial de Registro.
Rel. Min. Raul Araújo, 4ª Turma, j. 26/02/2019, DJe 15/03/2019.
Possibilidade de responsabilização civil por emissão de certidão imobiliária incorreta que gerou prejuízo em ação de usucapião.
Fonte: Migalhas