Introdução
Este artigo tem por objetivo o estudo da responsabilidade civil dos notários, tema de inúmeras e distintas soluções interpretativas jurídicas, que se pacificou com a formação do precedente qualificado relativo ao Tema 777, julgado pelo STF, em 3/19.
A proposta é de reflexão acerca da responsabilidade civil subjetiva como corolário da regra constitucional que estabelece a responsabilidade objetiva e direta do Estado, atribuindo aos seus agentes responsabilidade derivada.
Para tanto, será exposto, inicialmente, o histórico da responsabilidade civil do notário. Em seguida, tratar-se-á da natureza jurídica pública dos serviços notariais; da condição de agente público atribuída ao notário; da responsabilidade extracontratual do Estado decorrente dos danos que seus agentes causem a terceiros; e da responsabilidade subjetiva do notário como corolário da responsabilidade objetiva do Estado.
Também será exposta a concepção acerca da aplicabilidade do Tema 940, julgado pelo STF, em 8/19, aos notários, o que leva ao reconhecimento da ilegitimidade passiva desses agentes públicos para figurarem nas demandas em que se busque a reparação de danos decorrentes do exercício da atividade notarial, uma vez que, na qualidade de agentes públicos, submetem-se à aplicação da segunda parte do art. 37, 6º, da CF/88.
Por fim, discorrer-se-á sobre os reflexos da responsabilidade subjetiva do notário pelos danos oriundos de fraudes perpetradas por terceiros, tanto no que diz respeito aos atos notariais praticados no âmbito dos procedimentos físicos, quanto àqueles desempenhados de forma eletrônica, nos termos da provimento 100/20, da Corregedoria Nacional de Justiça.
Histórico da responsabilidade civil do notário
A responsabilidade civil do notário, segundo as lições de Fernando H. Mendes de ALMEIDA (1957, p. 435), já vinha disciplinada nas Ordenações Reinóis de Portugal, fundada na culpa, em cujo §2º do Título LXXX do Livro I das Ordenações Filipinas, de 1603, previa-se o seguinte:
Título LXXX, §2º. E antes de começarem a servir, darão fiança escrita por Tabelião público no livro das Notas, trasladada no livro da Câmara, a todo o dano e perda, que a alguma parte se causar por sua malícia ou culpa. A qual fiança será de trinta mil réis nas Cidades, e vinte mil reis nas Vilas, e nos Concelhos de terras chãs dez mil réis; e servindo se, darem as dias fianças, perderão os Ofícios. (1957 apud BENÍCIO, 2005, p. 225)
Conforme discorre Flauzilino Araújo dos SANTOS (1997 apud BENÍCIO, 2005, p. 7-10), após a Proclamação da República, o decreto 370, de 2/5/1890, que regulamentou o decreto 169-A, de 19/1/1890, foi uma das primeiras normas a tratar da responsabilidade dos notários e registradores. Referido decreto vigorou até 1917, data em que se iniciou a vigência do CC.
Relata Hércules Alexandre BENÍCIO (2005, p. 226) que, promulgado o CC, foi expedido o decreto 12.343, de 3/1/1917, que regulamentou provisoriamente a atividade de registros públicos. Em 1928, foi editado o decreto 18.542, que tratou da responsabilidade dos registradores, também fundada na culpa, no art. 37, que assim dispunha:
Art. 37. Além dos casos expressamente consignados, os officiaes serão civilmente responsáveis por todos os prejuízos que, por culpa ou dolo, causarem os seus prepostos e substitutos, estes quando de sua indicação, aos interessados no registro.
Sucedeu a esse regulamento o decreto 4.857/39, alterado pelo decreto 5.318/1940, que tratou da responsabilidade civil dos notários e dos registradores nos mesmos termos do transcrito art. 37 (BENÍCIO, 2005, p. 226).
Após a edição do decreto 4.857/1939, foi promulgada a lei 6.015/1973, intitulada lei de registros públicos, ainda vigente nos dias de hoje, que dispõe sobre a responsabilidade civil dos registradores, no art. 28, in verbis:
Art. 28. Além dos casos expressamente consignados, os oficiais são civilmente responsáveis por todos os prejuízos que, pessoalmente, ou pelos prepostos ou substitutos que indicarem, causarem, por culpa ou dolo, aos interessados no registro.
Posteriormente, foi promulgada a CF/88, que no art. 236, § 1º, dispôs que “[l]ei regulará as atividades, disciplinará a responsabilidade civil e criminal dos notários, dos oficiais de registro e de seus prepostos, e definirá a fiscalização de seus atos pelo Poder Judiciário”.
Com isso, leis posteriores foram editadas a fim de regular a responsabilidade civil dos notários e registradores, a exemplo, basicamente, da lei 8.935/1994 e da lei 9.492/1997, cujos arts. 22 e 38, respectivamente, assim estabelecem:
Art. 22. Os notários e oficiais de registro responderão pelos danos que eles e seus prepostos causem a terceiros, na prática de atos próprios da serventia, assegurado aos primeiros direito de regresso no caso de dolo ou culpa dos prepostos. (redação original)
Art. 38. Os tabeliães de protesto de títulos são civilmente responsáveis por todos os prejuízos que causarem, por culpa ou dolo, pessoalmente, pelos substitutos que designarem ou escreventes que autorizarem, assegurado o direito de regresso.
A despeito de estar normativamente regulada há bastante tempo, a responsabilidade civil dos notários, também por longo período, foi palco de intensos debates doutrinários e soluções jurisprudenciais distintas, assim como ocorreu com os demais ramos do instituto da responsabilidade civil no século XX, em que se produziu verdadeira “Torre de Babel”, em termos de apreciação, análise e aplicação da responsabilidade civil em amplo espectro (HIRONAKA, 2010, p. 39).
Inúmeras decisões do STF no sentido de que tal responsabilidade seria direta do Estado, “ao entendimento de que ‘os cargos notariais são criados por lei, providos mediante concurso público, e os atos de seus agentes, sujeitos à fiscalização estatal, são dotados de fé pública, prerrogativa esta inerente à ideia de poder delegado pelo Estado” (CAVALIERI, 2021, p. 340).
Outra corrente, a seu turno, com base na exegese gramatical do art. 22 da lei 8.935/1994, em sua redação anterior à publicação da lei 13.286/16 , defendia o entendimento de que a obrigação de reparar o dano decorrente de atividade notarial seria objetiva e pessoal do oficial (tabelião ou notário). (CAVALIERI, 2021, p. 341)
Rui STOCO (2007, p. 605) se refere a esta corrente – com severas e coerentes críticas – afirmando que, “vem-se, pois, extraindo daquela regra a exegese de que a ausência de referência ao elemento culpa do titular da serventia, no corpo do artigo, só pode conduzir à conclusão de se prescindir desse elemento subjetivo para a obrigação de indenizar nele estabelecida”.
Assevera Sérgio CAVALIERI (2021, p. 341) sobre a existência de uma terceira corrente, minoritária, que sustentava que a responsabilidade seria do tabelião ou notário, porém subjetiva, com base no art. 38 da lei 9.492/1997.
Com a promulgação da lei 13.286/16, que alterou o art. 22 da lei 8.935/1994, fez-se explícita a intenção do legislador no sentido de que a responsabilidade civil decorrente dos atos notariais e de registro se fundamenta na culpa ou no dolo do agente.
O STF, após os precedentes já mencionados, consolidou o entendimento no sentido de que o Estado responde diretamente apenas no caso de cartório oficializado, ao passo que o notário responde objetivamente pela atividade cartorária exercida à luz do art. 236 da CF/88, no que assume posição semelhante à das pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviços públicos (CAVALIERI, 2021, p. 341).
Recentemente, contudo, o STF, ao apreciar o Tema 777, no julgamento do RE 842.846-SC, com repercussão geral reconhecida, apaziguou a controvérsia e definiu, de forma vinculante, que (i) o Estado responde, objetivamente, pelos atos dos tabeliães e registradores oficiais que, no exercício de suas funções, causem danos a terceiros, assentado o dever de regresso contra o responsável, nos casos de dolo ou culpa; e que (ii) é inequívoca a responsabilidade civil subjetiva dos notários e oficiais de registro, por força do art. 22 da lei 8.935/1994.
Com o julgamento do Tema 777, o STF tratou e, com isso, consolidou a responsabilidade civil subjetiva dos notários e registradores, mediante as razões proferidas no voto do relator ministro Luiz Fux, com amparo em fundamentos que, ao nosso entendimento, são corretos e harmônicos com a sistemática da responsabilidade civil constitucional e infraconstitucional vigente, conforme se propõe a demonstrar nos tópicos seguintes.
A interpretação a respeito da responsabilidade civil subjetiva dos notários e oficiais de registro, assentada pelo julgamento do Tema 777 do STF, deve ser aplicada nas ações que tratarem de atos notariais e registrais praticados antes da promulgação da lei 13.286/16 – ao contrário do que decidiu o STJ no julgamento do REsp 1.849.884/DF -, considerando que a Corte Suprema não modulou os efeitos dessa decisão, pois reconheceu a responsabilidade civil subjetiva dos notários e dos registradores como decorrência lógica do entendimento de que, por serem eles agentes públicos, impõe-se a aplicação da responsabilidade civil objetiva do Estado e do dever de regresso contra o responsável, nos casos de dolo ou culpa.
Da natureza jurídica pública da atividade notarial e do enquadramento do notário como agente público. Definições necessárias para a teorização da responsabilidade civil dos notários
Contrariamente ao regime anterior – no qual os cartórios integravam, como órgãos da Administração direta, a estrutura administrativa do Estado (RIBEIRO, 2009, p. 01) -, o regime jurídico atualmente em vigor das atividades notariais e de registro estabelece que essa função, de natureza pública, será obrigatoriamente exercida por pessoa física, em caráter privado e com exclusão do Poder Público, porém por delegação deste. Além disso, definiu-se a obrigatoriedade do concurso público de provas e títulos para o ingresso da atividade e atribuiu-se ao Poder Judiciário a fiscalização de seus atos.
Nessa toada, vale dizer que o exercício das atividades notariais e de registro se configura privado no que toca à gestão administrativa, financeira e de pessoal, bem como à atuação jurídica. Contudo, isso não afasta o regime jurídico de Direito Público e a natureza estatal das atividades de atribuição de fé pública e de publicidade oficial a atos, contratos e direitos de terceiros, desempenhadas por essas serventias (RIBEIRO, 2008, P. 53).
Trata-se, em todo caso, de função pública – enquadrando-se como serviço público, segundo os que adotam a acepção ampla, ou apenas como atividade jurídica estatal, para os que definem serviço público de forma restrita -, sujeita, por conseguinte, à disciplina do direito administrativo. Esse, aliás, é o entendimento há muito firmado pelo STF.
Luís Aliende RIBEIRO (2009, p. 42) descreve os princípios fundamentais e diretrizes básicas da atividade notarial e de registro da seguinte forma:
I A natureza pública da função notarial e de registro e a imperatividade de sua delegação pelo Poder Público ao particular para seu exercício em caráter privado.
II A necessidade de lei para regular as atividades, disciplinar as responsabilidades civil e criminal dos notários, oficiais de registro e seus prepostos, definir a fiscalização dos seus atos pelo Poder Judiciário, assim como a necessidade de lei federal para estabelecer normas gerais sobre emolumentos.
III O ingresso na atividade mediante concluso público de provas e títulos.
IV A impossibilidade de que qualquer unidade fique vaga, sem abertura de concurso, por mais de seus meses.
Dentro desse contexto, os notários e registradores se inserem na ampla categoria de agentes públicos, embora não sejam funcionários públicos – tema sobre o qual inexiste dissenso na doutrina brasileira.
A expressão agentes, como conceito atribuído aos representantes ou delegados do Estado, foi contemplada no direito pátrio somente com a promulgação da Constituição Federal de 1988, com a previsão contida no art. 37, §6º, segundo preconiza Rui STOCO (2001, p. 602).
Extrai-se das lições de Celso Antônio Bandeira de MELLO a seguinte classificação dos agentes públicos:
Todos aqueles que servem ao Poder Público, na qualidade de sujeitos expressivos de sua ação, podem ser denominados agentes públicos. Com efeito, esta locução é a mais ampla e compreensiva que se pode adotar para referir englobadamente as diversas categorias dos que, sob títulos jurídicos deferentes, atuam em nome do Estado. Em consequência, a noção abrange tanto o Presidente da República, os Governadores, Prefeitos, Ministros, Secretários de Estado e de Município, Senadores, Deputados, Vereadores, como os funcionários públicos, os contratados pelo Poder Público para servirem-no sob regime trabalhista, os servidores de autarquias, de empresas e fundações estatais, os concessionários e permissionários de serviço público ou delegados de função pública, assim como os requisitados e gestores de negócios públicos. Em sua quem quer que desempenhe funções estatais é, enquanto as exercita, um agente público. (1936, p. 9)
Para grande parte da doutrina, os titulares dos serviços notariais e de registro são particulares em colaboração com a Administração Pública, na condição de delegados de ofícios públicos. Embora referido entendimento não seja uníssono na doutrina, não se nega a qualidade de agente público que lhes é atribuída.
Com o julgamento do RE 842.846, relativo ao Tema 777, o STF ratificou o entendimento de que “as figuras dos tabeliães e registradores oficiais se amoldam à categoria ampla de agentes públicos”.
Portanto, qualificam-se os titulares dos serviços notariais e de registro como agentes públicos, elemento determinante para a compreensão sobre a responsabilidade civil que lhes é atribuída.
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Fonte: Migalhas
