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A revogação do Decreto 10.502/2020 – Por Mário Goulart Maia

Por meio do Decreto 11.370, do dia 1º de janeiro de 2023, o presidente Lula revogou o herodiano Decreto 10.502, de 30 de setembro de 2020. O decreto revogado instituía a segregação educacional contra as pessoas com deficiência. Talvez alguns não saibam o que isso significa, razão pela qual se faz imperioso lembrar que se trata de uma pseudopolítica — excludente e injurídica — do governo passado, que intentou exonerar as escolas comuns da obrigatoriedade de aceitar a matrícula em classes regulares de estudantes com necessidades especiais, coisa que foi prontamente identificada como diretamente violadora da Constituição Federal, Convenções e Tratados Internacionais, sem falar no caráter segregacionista.

A escritora Gloria Jean Watkins (1952-2021), mais conhecida pelo pseudônimo Bell Hooks, autora, professora, artista e ativista antirracista estadunidense, produziu em obra seminal, inspirada na pedagogia do nosso imortal Paulo Freire (1921-1997), estudo temático sobre o assunto, no qual demonstrava a preocupação da questão educacional e necessária da inclusão como instrumento de aprendizagem e humanismo.

Afirmou assertivamente que, apesar de o multiculturalismo estar atualmente em foco em nossa sociedade, especialmente na educação, não há, nem de longe, discussões práticas suficientes acerca de como o contexto da sala de aula pode ser transformado de modo a fazer do aprendizado uma experiência de inclusão. Para que o esforço de respeitar e honrar a realidade social e a experiência de grupos não brancos possa se refletir num processo pedagógico, nós, como professores — em todos os níveis, do ensino fundamental à universidade — temos de reconhecer que o nosso estilo de ensino tem de mudar (Ensinando a Transgredir. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Editora Media, 2021, p. 41).

O egrégio Supremo Tribunal Federal, quando confrontado, diante de necessária e urgente atuação humanística, pela mão do eminente ministro Dias Toffoli, suspendeu, em decisão monocrática, a eficácia do citado decreto explicitamente violador e absurdo, vindo essa decisão a ser confirmada no Pleno do STF (por maioria), em deliberação que efetivou a garantia constitucional das pessoas com deficiência.

Vê-se que o douto ministro Dias Toffoli seguiu a lição sempre atual do ilustre jurista e magistrado estadunidense Benjamin Cardozo (1870-1938), quando disse que o juiz que molda a lei pelo método da filosofia pode estar satisfazendo um desejo intelectual de simetria de forma e substância. Mas está fazendo alguma coisa mais. Está mantendo o direito verdadeiro na sua resposta a um sentimento profundamente enraizado e imperioso. Na falta de outras experiências, o método filosófico deve permanecer o instrumento dos tribunais, se quiserem excluir a sorte e o favor e governar os negócios dos homens com a uniformidade serena e imparcial que é da essência da ideia do direito (A Natureza do Processo e a Evolução do Direito. Belo Horizonte: Líder, 2004, p.16).

O ignominioso decreto além de violar os direitos fundamentais das pessoas com deficiência, derrogava as conquistas das anteriores e constantes lutas sociais contra qualquer forma de discriminação, o que o fazia — sem dúvida — infringente da proibição de retrocesso, que é apanágio do constitucionalismo atual. A vedação ao retrocesso e o respeito às normas que o disciplinam não permitem, em hipótese alguma, a sua flexibilização, a não ser para a sua ampliação. Portanto, a constante vigilância do retrocesso é princípio basilar do Estado Constitucional de Direito, termo utilizado por Luigi Ferrajoli, em sua obra Poderes Selvagens: A Crise da Democracia Italiana.

Nas palavras do mestre lusitano professor António Manuel Hespanha, ao falar da natureza especifica do efeito de jurisdicidade, a prática jurídica não se limita a transformar a consciência dos homens (como acontece com as práticas ideológicas), ela transforma as próprias relações sociais. Ou, mais precisamente, produz o efeito de sentido adequado a desencadear um processo de transformação coativa dessas relações. Assim, os objetos da prática jurídica são as próprias situações a valorar juridicamente (A história do Direito na História Social. Lisboa, Horizonte).

O decreto, a olhos vistos, também impactava diretamente o artigo 4º. da Lei 13.146, de 6 de julho de 2015, que institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência), que garante que toda pessoa com deficiência tem direito à igualdade de oportunidades com as demais pessoas e não sofrerá nenhuma espécie de discriminação.

O parágrafo primeiro desse mesmo artigo enuncia que considera-se discriminação em razão da deficiência toda forma de distinção, restrição ou exclusão, por ação ou omissão, que tenha o propósito ou o efeito de prejudicar, impedir ou anular o reconhecimento ou o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais de pessoa com deficiência, incluindo a recusa de adaptações razoáveis e de fornecimento de tecnologias assistidas, enquanto o parágrafo segundo preconiza que a pessoa com deficiência não está obrigada à fruição de benefícios decorrentes de ação afirmativa.

O artigo 1º, III da Constituição enuncia que a República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos (…) a dignidade da pessoa humana; (…). Consoante o artigo 3º, I da Carta Política, constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil construir uma sociedade livre, justa e solidária. O artigo 5º, a seu turno, proclama que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza (…).

A Convenção das Pessoas com Deficiência implantou (artigo 3) os seguintes princípios gerais: (a) o respeito pela dignidade inerente, à autonomia individual, inclusive a liberdade de fazer as próprias escolhas, e a independência das pessoas; (b) a não-discriminação; (c) a plena e efetiva participação e inclusão na sociedade; (d) o respeito pela diferença e pela aceitação das pessoas com deficiência como parte da diversidade humana e da humanidade; (e) a igualdade de oportunidades; (f) a acessibilidade; (g) a igualdade entre o homem e a mulher; (h) o respeito pelo desenvolvimento das capacidades das crianças com deficiência e pelo direito das crianças com deficiência de preservar sua identidade.

Ao comentar o artigo 3 da Convenção, que trata exatamente dos princípios gerais de tal diploma, o professor português Jorge Miranda destaca que este preceito e a Convenção toda devem ser lidos a luz da Declaração Universal dos Direitos do Homem, cujo o artigo 1º justamente proclama que todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos, dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espirito de fraternidade. Dotados de razão e de consciência – eis o denominador comum a todos os homens e a todas a s mulheres em que consiste ou se fundamenta essa igualdade. Dotados de razão e de consciência — eis o que, para além de quaisquer diferenças, justifica o reconhecimento, a garantia, a promoção e a efectivaçao dos direitos fundamentais. Dotados de razão e consciência — eis porque os direitos de todos os homens e de todas as mulheres não podem desprender-se da consciência geral da humanidade.

A Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007, assegura a igualdade e a não-discriminação, assim: 1. Os Estados Partes reconhecem que todas as pessoas são iguais perante e sob a lei e que fazem jus, sem qualquer discriminação, a igual proteção e igual benefício da lei. 2. Os Estados Partes proibirão qualquer discriminação baseada na deficiência e garantirão às pessoas com deficiência igual e efetiva proteção legal contra a discriminação por qualquer motivo. 3. A fim de promover a igualdade e eliminar a discriminação, os Estados Partes adotarão todas as medidas apropriadas para garantir que a adaptação razoável seja oferecida. 4. Nos termos da presente Convenção, as medidas específicas que forem necessárias para acelerar ou alcançar a efetiva igualdade das pessoas com deficiência não serão consideradas discriminatórias.

O artigo 17 da Convenção, ao dispor sobre a proteção da integridade da pessoa, soleniza que toda pessoa com deficiência tem o direito a que sua integridade física e mental seja respeitada, em igualdade de condições com as demais pessoas. Esses são diplomas normativos que, dentre tantos outros, bem como convenções e tratados, são conhecidos por todos, embora lamentavelmente pouco lembrados.

No Brasil, o Censo Escolar apontou que, em 2018, cerca de 1,2 milhão de alunos se enquadrava entre as pessoas com necessidade especiais e esse contingente de estudantes ficaria à mercê de exclusão apriorística do acesso à escola regular. A estimativa do Censo indica que houve um aumento de mais de 33% dessa comunidade, em relação a 2014.

Está claro que esse pseudo-sistema educacional tornava auto-sustentável a discriminação e a retroalimentava com rara eficiência, sobretudo mediante o disfarce da inclusividade. Na verdade, criava uma categoria de alunos posta à margem da convivência escolar, consequentemente criando uma nova categoria de excluídos da convivência social.

Dentre tantas outras violações a Diplomas, Convenções e Tratados que o decreto maculava, nunca é demais lembrar que tais direitos e garantias são de notório conhecimento de todos, embora lembrados por poucos. O então decreto afrontava direitos fundamentais, reconhecidos pelo ordenamento pátrio e internacional, como a Convenção das Pessoas com Deficiência, realizada em Nova York, em 2007, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) e, nas Américas, com o Pacto de San José da Costa Rica (1969).

O odioso decreto carecia de base científica e, sobretudo de fundamento humanístico, criando e fomentando dentro das escolas regulares as classes segregadas, já que permitia às direções escolares a negação de matrícula aos alunos com necessidades especiais. Isso era a implantação da segregação já nas séries iniciais do sistema escolar, como que condicionando as pessoas às segregações futuras.

A inclusão, portanto, é fundamento humanitário e universal e um poderoso instrumento para o combate ao preconceito e à intolerância. Em oportunidade passada, tive a boa-sorte de registrar esse pensamento, no ano de 2013, e hoje, exatamente dez anos depois, tenho novamente a boa-sorte de registrar e agradecer, tendo a certeza de que combati o bom combate, terminei a corrida, guardei a fé, nas palavras de Paulo de Tarso, em carta a Timóteo.

Dizia eu, naquele ensejo, que (…) a linguagem dos homens é o sinal de sua racionalidade, é o impulso para os seus relacionamentos com os outros, veículo da paz e da discórdia, instrumento de opressão e libertação, misteriosa fala humana, fator da política e do poder, via pavimentada ou obscura do conhecimento e da ciência, pretensão de congelamento das coisas dinâmicas em predefinições imobilizadas ou astuciosamente imutáveis, conceitos prévios elaborados sobre os sentimentos e as emoções, porta do engodo e caminho ascendente (…) (As Origens das Leis Escritas e do Método de sua Aplicação Literal. Fortaleza: Curumim, 2013, p. 72).

Fonte: Mário Goulart Maia é conselheiro do CNJ (Conselho Nacional de Justiça).

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