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Artigo: A dignidade da pessoa humana e seu aparente conflito com princípios basilares do registro imobiliário, diante da alteração do prenome ou do gênero do titular da propriedade – Por Manoel Aristides Sobrinho

Introdução

O sistema de registro de imóveis brasileiro protege de modo mais ou menos equivalentes a segurança jurídica dinâmica e estática da propriedade imobiliária.

Assim sendo, rege-se por diversos princípios, a fim de alcançar esse desiderato.

Neste artigo, objetiva-se demonstrar como o princípio da dignidade humana, em determinadas situações, interfere diretamente na atividade do Registrador de Imóveis, obrigando-o a tomar certos cuidados quando estiver diante de fatos nos quais o princípio referido apresenta-se em aparente contradição com os princípios próprios deste ramo dos Registros Públicos.

Para tanto, traz-se à baila, evidentemente sem indicação de nomes e números que poderiam identificar os verdadeiros personagens, um caso concreto no qual o Registrador teve que usar do juízo prudencial, a fim de atender tanto a pessoa diretamente interessada como à sociedade em geral, que em tese poderia sofrer prejuízo diante de um menor descuido.

A questão não é inédita, eis que já debatida por bons articulistas, mas vale à pena se trazer à tona mais um ingrediente que de algum modo sempre soma, também, para lançar luzes em uma questão tão delicada.

Com efeito, o caso que inspirou este estudo, acima referidos, reporta-se ao do pedido de uma pessoa que, sendo coproprietária de um imóvel, requereu a alteração do seu prenome na matrícula desse imóvel, considerando não mais usar o nome do gênero feminino, já alterado perante o Registro Civil das Pessoas Naturais, ou seja, por ter deixado de ser chamada de “A” para a partir de então chamar-se “B”, nome masculino com o qual se identifica.

Ao requerimento foi anexada a nova certidão de nascimento sem nenhuma referência ao prenome anterior, nos termos do art. 5191 do Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça.

E agora? Qual a decisão a ser tomada pelo Registrador de Imóveis? Haveria a possibilidade de expedir, para essa exclusiva finalidade, uma nota de devolução exigindo que da certidão do Registro Civil constasse averbação da alteração de gênero do requerente ou deveria simplesmente ser negado o acolhimento do pedido por considerar que nessas circunstâncias estaria sendo ferido princípios norteadores do sistema de registro de imóveis brasileiro tais como o da segurança jurídica, publicidade, e o princípio da continuidade?

Casos como o narrado acima têm sido apresentados  com mais frequência perante os Registradores de Imóveis e não podem ficar sem uma decisão, até porque diante de uma eventual negativa a parte interessada, mediante simples requerimento, dispõe do direito de levar a questão para ser decidida pelo Juiz de Direito com competência exclusiva para os feitos relacionados aos registros públicos ou, onde não existir Juízo especializado, suscitar dúvida para o Juízo indicado na Lei de Organização Judiciária dos respectivos Estados, normalmente, o Juiz Diretor do Fórum, de forma que, desde logo, encontrando segurança para a prática do ato, o Oficial do Registro de Imóveis encurta o prazo de tramitação do procedimento da alteração do nome na matrícula do bem de raiz  e deixa de ocupar o sistema judicial que, em face  da ocorrência de  uma dúvida registrária, deve ouvir, inclusive, o órgão do Ministério Público antes da tomada de uma decisão.

Mas as indagações não pairam por aí. Em caso de deferimento do pedido de alteração do prenome ou do gênero, como proceder na eventual expedição de uma cadeia dominial, sem ferir o direito da dignidade da pessoa cujo nome foi alterado, e, também, respeitando-se os princípios da segurança jurídica, publicidade e da continuidade que devem ser observados no exame dos sucessivos registros, entre os quais, aqueles pertinentes ao prenome ou gênero alterado pela a pessoa requerente.                                                                                                                                                                            

A dignidade da pessoa humana no plano jurídico

Em busca para as respostas formuladas no tópico introdutório, necessário que se discuta, em um primeiro plano, o que se entende no mundo jurídico pela categoria dignidade da pessoa humana.

Pois bem, a dignidade da pessoa humana é coluna dos direitos fundamentais, encontrando-se garantida no ordenamento jurídico brasileiro por força do art. 1º, III, da Constituição Federal.

Provém do latim dignitas2, – quer dizer virtude, honra, consideração – e em regra se entende a qualidade moral, que, possuída por uma pessoa, serve de base ao seu próprio respeito. 

Existem confrontos entre o princípio da dignidade humana e certos direitos, tais como o direito à vida, outros temas da bioética, do biodireito e, no que se aqui interessa, o direito à informação.

 Também, constata-se divergências quanto à interpretação da definição de dignidade humana. Explica FELIX3 que o respeito à dignidade humana para uns implica em “considerar a vida inviolável, como um bem indisponível, ainda que sob condições degradantes”; já para outros, não há como conjecturar a dignidade da pessoa humana “sem o necessário reconhecimento do direito à autonomia e à liberdade de disposição acerca das ingerências em seu próprio curso vital”.

A concepção do termo dignidade pauta-se na autonomia ética do ser humano, considerando esta autonomia como direito fundamental do homem e que se sustenta na ideia de que o ser humano não pode ser tratado nem por ele próprio como objeto.

No pensamento Kantiano interpreta-se o conceito de dignidade como uma “realidade moral” inerente a todo ser humano. Isto é, a pessoa tem dignidade, porque é fundamentalmente capaz de autorrealização; e, conforme Plácido E Silva4, “é chamada a realizar com sua inteligência e liberdade a sua própria moralidade”. Não consiste “em viver como um exemplar da sua espécie, mas a cada ser humano é dada uma tarefa específica e proporcionada: ser do ponto de vista moral e pela força da sua liberdade um ser humano bom”. Ou, como diria Kant5, a dignidade humana fundamenta-se no fato de a pessoa ser essencialmente moral.

É recente a noção de dignidade como característica comum a todos os seres humanos, sendo por isso difícil fundamentá-la senão como reconhecimento coletivo de uma herança histórica da civilização, colocando-se a questão de saber se a dignidade humana não seria o modo ético como o ser humano vê a si próprio.

SARLET6 expõe o pensamento de que o princípio da dignidade humana não é absoluto, sob pena de perder sua própria substância enquanto princípio, podendo, inclusive, ser realizada em diversos graus, isto sem falar na necessidade de resolução de eventuais tensões entre dignidade de diversas pessoas, ou mesmo a possível existência de um conflito entre o direito à vida e à dignidade da pessoa, envolvendo um mesmo sujeito de direitos. Ainda para SARLET7 “não restam dúvidas de que a dignidade é algo real, algo vivenciado concretamente por cada ser humano, já que não se verifica maior dificuldade em identificar claramente muitas das situações em que é espezinhada e agredida”.

Na condição de valor intrínseco do ser humano, a dignidade, segundo o publicista e magistrado germânico DIETER GRIMM8 “gera para o indivíduo o direito de decidir de forma autônoma sobre seus projetos existenciais e felicidade e, mesmo onde esta autonomia lhe faltar ou não puder ser atualizada, ainda assim ser considerado e respeitado pela sua condição humana”.

Também expõe o alemão LUHMANN9 a ideia de que a dignidade:

[…] possui uma dimensão dúplice, que se manifesta enquanto simultaneamente expressão da autonomia da pessoa humana (vinculada à ideia de autodeterminação no que diz com as decisões essenciais a respeito da própria existência), bem como da necessidade de sua proteção (assistência) por parte da comunidade e do Estado, especialmente quando fragilizada ou até mesmo – e principalmente – quando ausente a capacidade de autodeterminação.

Para MAURER,10 sem liberdade, a dignidade não pode ser compreendida, e nem a liberdade sem a dignidade. A pessoa é digna, pois é um ser livre. Desse modo, liberdade e dignidade são associadas e inseparáveis. Todavia, elas não podem ser confundidas.

Dignidade tem um sentido amplo de respeito, proteção e tutela das pessoas. Segundo SARLET,11 existe uma dificuldade de compreensão a respeito da dignidade da pessoa humana, inclusive para efeitos de definição do seu âmbito de proteção como norma jurídica fundamental.

Uma das principais dificuldades, todavia – e aqui recolhemos a lição de Michael Sachs -, reside no fato de que no caso da dignidade da pessoa, diversamente do que ocorre com as demais normas jusfundamentais, não se cuida de aspectos mais ou menos específicos da existência humana (integridade física, intimidade, vida, propriedade, etc.), mas, sim, de uma qualidade tida para muitos – possivelmente a esmagadora maioria – como inerente a todo e qualquer ser humano, de tal sorte que a dignidade – como já restou evidenciado – passou a ser habitualmente definida como constituindo o valor próprio que identifica o ser humano como tal, definição esta que, todavia, acaba por não contribuir muito para uma compreensão satisfatória do que efetivamente é o âmbito de proteção da dignidade, pelo menos na sua condição jurídico-normativa.12 

A ambiguidade interpretativa dos princípios fundamentais da pessoa, especialmente no que diz respeito à dignidade da pessoa humana, faz com que a Constituição brasileira seja frequentemente questionada e pressionada a trazer à baila definições mais precisas e, inclusive, a discriminar mais designadamente os tipos de situações e as respectivas aplicações penais, em conformidade com cada caso específico.

Em resumo, do mesmo modo que já havia ocorrido em outras partes do mundo, a dignidade da pessoa humana tornou-se um comando jurídico no Brasil, como já citado, com o advento da Constituição Federal de 1988, a qual, em seu artigo 1º, no inciso III, prescreve que “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado democrático de Direito e tem como fundamentos a dignidade da pessoa humana”.13

Princípios do registro de imóvel especialmente aplicáveis ao caso em exame             

Ao examinar todo e qualquer título cujo acesso se pretenda ao álbum imobiliário, logo vem à mente do Registrador os princípios que norteiam o sistema de registro de imóveis para, a partir daí, verificar se o instrumento que se encontra em suas mãos preenche ou não os requisitos básicos para acolhimento no fólio real.

No caso em análise, conforme já informado no item de introdução, destacam-se os princípios da segurança jurídica, publicidade e o princípio da continuidade, melhor analisados a seguir.

Tratando do primeiro dos princípios acima citados, CASSETTARI14 e SALOMÃO asseveram que “A segurança jurídica é a finalidade suprema de toda atividade notarial e registral. Talvez o correto seria chamá-la mega princípio, pois todos os demais princípios convergem para ela”.

Em relação ao princípio da publicidade a Lei dos Registros Públicos (lei 6.015/73) não deixa dúvida de que a publicidade se trata de um princípio básico do sistema de registro de imóveis brasileiro, tanto que essa lei ao tratar do tema dispõe em seu art. 17 que “Qualquer pessoa pode requerer certidão do registro sem informar ao oficial ou ao funcionário o motivo ou interesse do pedido”.

Noutro giro, BRANDELLI15 ensina que “Do ponto de vista genérico, a publicidade pode ser conceituada como aquela atividade destinada a dar a conhecer a alguém certa situação […] e que “Dar publicidade dos atos é tornar acessível às pessoas certas informações […]”16.

Já o princípio da continuidade funciona como um elo entre os sucessivos registros que vão sendo praticados na matrícula do imóvel seja em face dos atos ou negócios jurídicos ou apenas por questões meramente administrativas como no caso da retificação de ofício de um erro material.

Ao tratar desse último princípio, LOUREIRO17 ensina que “Segundo o princípio da continuidade, os registros devem ser perfeitamente encadeados, de forma que não haja vazios ou interrupções na corrente registrária”.

Do aparente conflito entre o princípio da dignidade da pessoa humana e os princípios do registro imobiliário               

Fazendo-se uma leitura entre o princípio da dignidade da pessoa humana e os princípios que regem o Registro de Imóveis, o leitor menos atento poderia pensar que no caso concreto aqui examinado, o primeiro princípio acima referido excluiria os princípios registrais supracitados.

Todavia, trata-se de uma falsa contradição, pois a solução será encontrada com uma simples ponderação nem sempre favorável ao princípio constitucional, mas, na espécie, prevalece sim o princípio da dignidade da pessoa humana, considerando que ao se encerrar a matrícula antiga (ou até mesmo uma simples ficha de matrícula se isso resolver o caso), transporta-se para a nova matrícula descerrada todos os atos ainda vigentes na matrícula antiga, mudando-se apenas o nome do (a) proprietário (a), de forma que não se estará ferindo nenhum dos princípios registrais examinados e, em havendo necessidade de expedição de uma certidão constando o prenome ou gênero alterado na nova matrícula, a publicidade  será assegurada mediante ordem judicial ou a pedido da própria pessoa que solicitou a alteração do seu prenome ou gênero, valendo lembrar  que o encerramento da matrícula ou apenas de parte dela (ficha) é ato de ofício do Registrador que já se encontra autorizado a realizá-lo nos termos do art. 41 da lei 8.935/94.

Conclusão

Ao enfrentar um aparente conflito entre princípios que incidam diretamente sobre o sistema de registro de imóveis, como no caso concreto analisado, deve o Registrador, ponderando sobre o fato submetido a sua decisão, optar por aquele princípio que melhor resolva a questão, não necessitando de autorização administrativa ou judicial, pois essa permissão lhe é dada pelo próprio ordenamento jurídico.


1 Art. 519, do Provimento 149, do Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça. “A alteração de que trata o presente Capítulo tem natureza sigilosa, razão pela qual a informação a seu respeito não pode constar das certidões dos assentos, salvo por solicitação da pessoa requerente ou por determinação judicial, hipóteses em que a certidão deverá dispor sobre todo o conteúdo registral”.          

2 SILVA, Oscar José de Plácido e. Vocabulário Jurídico. Vol. II; São Paulo: Forense, 1967, p. 526.                                                                                                                                               

3 FELIX, Crisiany Machado, 2006, p. 93.

4 JUNGES, José Roque. Bioética, perspectivas e desafios. São Leopoldo: Editora Unisinos, 1999, p. 110.                                                                                                        

5 JUNGES, José Roque. Bioética, perspectivas e desafios. São Leopoldo: Editora Unisinos, 1999, p. 110.

6 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2001.

7 SARLET, Ingo Wolfgang. As dimensões da dignidade da pessoa humana: construindo uma compreensão jurídico-constitucional necessária e possível. Revista Brasileira de Direito Constitucional – RBDC n. 09 – jan./jun. 2007, p. 364.

8 apud SARLET, 2007, p. 378.

9 apud SARLET, Ingo Wolfgang. As dimensões da dignidade da pessoa humana: construindo uma compreensão jurídico-constitucional necessária e possível. Revista Brasileira de Direito Constitucional – RBDC n. 09 – jan./jun. 2007, p. 376.

10 MAURER, 2005, p. 75 apud FELIX, 2006, p. 95:

11 SARLET, Ingo Wolfgang. As dimensões da dignidade da pessoa humana: construindo uma compreensão jurídico-constitucional necessária e possível. Revista Brasileira de Direito Constitucional – RBDC n. 09 – jan./jun. 2007.

12 SARLET, Ingo Wolfgang. As dimensões da dignidade da pessoa humana: construindo uma compreensão jurídico-constitucional necessária e possível. Revista Brasileira de Direito Constitucional – RBDC n. 09 – jan./jun. 2007, p. 364.

13 BRASIL, Constituição Federal de 1988, Art. 1º, incido III.

14 CASSETTARI, Cristiano.  Registro de imóveis. Indaiatuba: Editora Foco, 2022, p. 29.

15 BRANDELLI, Leonardo. Registro de imóveis: Eficácia material. Reio de Janeiro: Forense, 2016, p. 80.

16 BRANDELLI, Leonardo. Registro de imóveis: Eficácia material. Reio de Janeiro: Forense, 2016, p. 80.

17 LOUREIRO, Luiz Guilherme. Registros públicos: teoria e prática. – 4 ed. Ver. E ampl. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2013, p.314.

Fonte: Migalhas

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