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Artigo: Alienação fiduciária de bem imóvel em garantia – Por Mauro Antônio Rocha

É preciso elidir teses inconvenientes e com potencial de superexposição do procedimento extrajudicial às injunções e interpretações do Poder Judiciário e prestigiar proposições que aprimorem os procedimentos de intimação do fiduciante e de realização dos bens consolidados.

  1. A Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça publicou no final do ano passado acórdão exarado nos autos do recurso especial 1.891.498/SP1, para ratificar entendimento jurisprudencial sobre a “convergência entre o disposto no art. 53 do CDC e os ditames da lei 9.514/97” e firmar a tese do precedente qualificado repetitivo nº 1095, com a seguinte ementa:

Em contrato de compra e venda de imóvel com garantia de alienação fiduciária devidamente registrado em cartório, a resolução do pacto, na hipótese de inadimplemento do devedor, devidamente constituído em mora, deverá observar a forma prevista na lei 9.514/97, por se tratar de legislação específica, afastando-se, por conseguinte, a aplicação do Código de Defesa do Consumidor.2

A tese recebida com incontido entusiasmo pelo empresariado da construção civil, instituições de crédito imobiliário e pelos pensadores do IBRADIM sustenta que, para além de ser posterior e específica, a lei 9.514/97, em seu art. 27, § 4º, “expressamente prevê, repita-se, a transferência ao devedor dos valores que, advindos do leilão do bem imóvel, vierem a exceder (sobejar) o montante da dívida, não havendo se falar, portanto, em perda de todas as prestações adimplidas em favor do credor fiduciário”.3

  1. A redação deficiente da ementa exige, no entanto, algum esforço de interpretação para perfeita compreensão de seu alcance.

  Na estrutura jurídica adotada para a alienação fiduciária de bem imóvel no Brasil há uma nítida distinção entre a operação de venda e compra de imóvel, com alienação fiduciária do bem para garantia do pagamento parcelado e periódico do preço ao vendedor/credor fiduciário e a operação de venda e compra com pagamento do preço à vista realizado com recursos obtidos mediante contratação de mútuo em dinheiro no mercado de crédito imobiliário com a garantia fiduciária, neste caso, do montante do empréstimo concedido em dinheiro.

Nesse sentido:

“Na aquisição de bem imóvel no âmbito dos sistemas oficiais de financiamento imobiliário – processa-se uma operação de venda e compra com pagamento do preço integral e à vista.

Concomitantemente, a instituição financeira concede ao adquirente um empréstimo em dinheiro destinado ao pagamento do preço, cujo retorno estará garantido pela alienação fiduciária do bem financiado (ou de um outro bem qualquer), de forma que o inadimplemento da obrigação do devedor implicará na execução extrajudicial da dívida com vista ao retorno dos recursos financeiros ao credor.”4

Decorre dessa distinção que somente contratos de compra e venda com parcelamento do preço contam com “garantia de alienação fiduciária” e, dessa forma, estariam sujeitos aos ditames da tese repetitiva mencionada. E não poderia ser diferente, uma vez que, na compra e venda com financiamento imobiliário a “garantia de alienação fiduciária” é constituída em favor do contrato de mútuo, cuja resolução só é possível, em qualquer hipótese, com o reembolso do crédito ou liquidação total da dívida contratada, sem prejuízo do direito constitucional do adquirente do imóvel de, assumindo os riscos inerentes, intentar ação própria com vistas à resolução do contrato de venda e compra.

De outro lado, por confrontar o art. 53 do Código de Proteção ao Consumidor com dispositivos da lei de regência da garantia fiduciária o repetitivo delimitou sua aplicação aos contratos firmados em relação de consumo, excluindo também as operações imobiliárias contratadas entre particulares no âmbito do Código Civil.

Avançando, a ementa se refere a “contrato de compra e venda de imóvel com garantia de alienação fiduciária devidamente registrado em cartório”. A utilização do substantivo masculino registrado está a indicar que o objeto do registro exigido é o contrato de compra e venda, o que aparenta tratar-se de mero erro na redação.

Ressalte-se que, pelo princípio registral da cindibilidade o contrato principal (de venda e compra) é registrável independentemente do contrato acessório (alienação fiduciária em garantia). No entanto, é vedado o ingresso do contrato acessório ao fólio imobiliário sem o registro do contrato principal.

De toda forma, tanto a transmissão da propriedade quanto a constituição da propriedade fiduciária se perfazem com o registro dos contratos no competente Ofício de Registro de Imóveis, não havendo justificativa para se falar em execução extrajudicial com – ou sem – os preceitos da lei 9.514/97 se inexistentes esses registros, havendo “simples crédito, situado no âmbito obrigacional, sem qualquer garantia real nem propriedade resolúvel transferida ao credor”.5

Finalmente, nos termos em que foi redigida a ementa, a tese do repetitivo 1095, com a observância da forma prevista na lei 9.514/97, se aplicará tão somente às ações que apresentem cumulativamente as seguintes condições: (i) contrato de compra e venda de imóvel com parcelamento do preço garantido por alienação fiduciária, (ii) compra e venda e alienação fiduciária registradas na matrícula imobiliária correspondente, e (iii) inadimplemento caracterizado e devedor constituído em mora.

  1. Entretanto, menos de três meses passados, em artigo publicado no boletim Migalhas6, o brilhante advogado Dr. Alexandre Junqueira Gomide, vice-presidente do IBRADIM, explicita sua inquietação e discordância com a limitação imposta ao campo de aplicação do repetitivo e revela novas proposições de interesse exclusivo dos, já não tão satisfeitos, mercados da construção civil e imobiliário, que preveem, o vencimento integral da dívida, ainda que o devedor fiduciante se encontre adimplente,  na “hipótese de o devedor fiduciante não ter mais condições financeiras para adimplir o contrato de mútuo (pagamento das prestações a vencer)”, assim como, a desobrigação – nesses casos – da intimação para a purgação da mora, ficando o credor fiduciário autorizado a iniciar a realizar os leilões públicos de venda para a satisfação do crédito, o que na execução judicial corresponderia, a nosso juízo, à supressão da citação e privação do executado do devido processo legal.

E, para rematar, o i. Advogado pondera sobre a possibilidade de se impedir o devedor fiduciante adimplente de buscar a solução judicial para a resolução do contrato de compra e venda do imóvel, utilizando-se das razões e dos argumentos jurídicos possíveis, com a consequência do cancelamento automático do contrato acessório de garantia, em caso de eventual provimento do pedido, contrariando dispositivos constitucionais de direitos e garantias fundamentais.

“São as outras situações referidas no julgado que causam inquietação. Segundo o julgado, para aplicação da lei 9.514/97, há necessidade de o devedor fiduciante estar inadimplente. Tal assertiva pode levar à incorreta interpretação de que o adquirente adimplente que pretende a extinção do vínculo contratual da compra e venda com alienação fiduciária pode simplesmente propor ação de resolução do contrato para devolver a coisa e obter o reembolso (ainda que parcial) do preço pago.

[…]

Assim, o acórdão que resultou na tese firmada pode permitir a incorreta interpretação de que o adquirente adimplente em contrato com alienação fiduciária tem a possibilidade de propor ação de resolução do contrato de compra e venda, de modo a afastar a incidência da Lei especial.”

É interessante constatar que no mesmo texto de fundo jurídico elaborado com a intenção declarada de enaltecer a prevalência da lei 9.514/97 e seus arts. 26 e 27 em relação ao CDC permitindo ao credor fiduciário excutir a garantia mediante procedimento especial de execução extrajudicial e simplificada neles estabelecido, o articulista contradite as travas de segurança e proteção jurídicas conferidas ao devedor fiduciante e que caracterizam o procedimento extrajudicial estabelecido na lei, especialmente a observância dos pressupostos essenciais da execução extrajudicial (inadimplemento da obrigação e decurso do prazo contratual de carência) previstos no art. 26 e § 2º da lei; da limitação da cobrança às prestações vencidas ou que se vencerem até a data do pagamento (que expressam a vedação de impertinente cobrança antecipada de dívida não vencida); bem como da obrigatória convocação pessoal do fiduciante para tomar conhecimento da cobrança e purgar a mora, se quiser, no prazo legal, tudo em conformidade com o § 1º do art. 26 da lei de regência.

  1. É quando trata da execução extrajudicial da garantia que o artigo abraça estranhas considerações, claramente desconexas do procedimento executivo extrajudicial único, específico e simplificado estabelecido nos seus arts. 26 a 27 da lei 9.514/97 e projeta sua aplicação a situações contratuais regulares e adimplentes, pela simples presunção do credor fiduciário de possível e eventual impossibilidade futura de pagamento pelo devedor fiduciante.

Considera-se inadimplente o devedor que deixou de cumprir a obrigação legal ou contratual, no tempo, lugar e forma estabelecido e, a contrário sensu, será considerado adimplente, para todos os fins de direito, a parte que cumpriu regularmente a obrigação, ainda que ao fazê-lo tenha manifestado discordância, descontentamento ou a intenção de extinguir o vínculo contratual da compra.

Ademais, mesmo que o tenha feito de forma visceral e capaz de caracterizar a quebra antecipada do contrato, o vencimento antecipado da dívida total e sua constituição em mora, remanescerá ao fiduciante a garantia própria do direito de ação, expressa no art. 5º, XXXV, da Constituição Federal de propor, a risco, a ação de resolução contratual que entender adequada, assim como a obrigatoriedade do fiduciário de proceder à intimação do devedor, na forma e nos termos da lei 9.514/97, para a purga da mora no prazo legal.

Para além disso, o direito processual brasileiro dispõe de medidas cautelares eficazes para os casos de previsível impossibilidade futura de pagamento ou de condutas contrárias ao cumprimento da obrigação, que representem risco efetivo e comprovável de prejuízo ao credor fiduciário.

  1. Concluindo, com a devida vênia, a segurança jurídica buscada pelo ilustre advogado e seus representados para a “principal propulsora do mercado imobiliário e da concessão dos financiamentos habitacionais” deve resultar de um justo equilíbrio entre as partes, da estabilidade dos procedimentos de execução extrajudicial e, especialmente, do respeito aos direitos dos fiduciantes que propiciam a ‘combustão’ sem a qual não se atingirá a ‘propulsão’ almejada.

Para tanto, é preciso elidir teses inconvenientes e com potencial de superexposição do procedimento extrajudicial às injunções e interpretações do Poder Judiciário e prestigiar proposições que aprimorem os procedimentos de intimação do fiduciante e de realização dos bens consolidados e, principalmente, que viabilizem a adaptação da garantia fiduciária aos interesses de outros setores da economia cujos contratos, de alta complexidade, não podem continuar dependentes de modelos sintéticos forjados para a garantia de negócios jurídicos triviais como a venda e compra imobiliária.


1 Resp 1.891.498/SP, Rel. Min. Marco Buzzi, 2ª Seção do STJ. jul. 26/10/2022, pub. 19/12/2022.

2 Precedente qualificado. Tema nº 1095. Superior Tribunal de Justiça.

3 Página 9 do voto do relator Min. Marco Buzzi, no Resp 1.8991.498/SP.

4 ROCHA, Mauro Antonio. Alienação Fiduciária de bem imóvel – Da supergarantia do crédito imobiliário ao Big Mac dos negócios financeiros. São Paulo: Editorial Lepanto, 2022. p. 317

5 Item 34 do voto vogal proferido pela Min. Nancy Andrighi, no Resp 1.8991.498/SP.

6 https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-edilicias/384717/o-tema-repetitivo-1095-do-stj-primeiras-impressoes

Fonte: Migalhas

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