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ARTIGO: Da possibilidade do instrumento particular para doação de imóveis acima de 30 salários mínimos – Por Marcus Kikunaga

Introdução

Com a permissão e convite do Professor Doutor Flavio Tartuce, Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Contratual – IBDCONT, apresentamos nossos fundamentos legais que permitem a instrumentalização particular da doação de imóveis, acima de 30 salários mínimos, baseada na interpretação sistemática do atual Código Civil, na leitura conjunta da primeira parte do artigo 108, o qual faz ressalva quanto a exigibilidade da escritura pública nos negócios imobiliários com a redação do artigo 541, que trata da permissão da forma plúrima do contrato de doação.

Da possibilidade da doação de imóveis por instrumento particular

O Código Civil atual, copiando a norma anterior, dispõe sobre a facultatividade da forma pública ou particular na instrumentalização do contrato de doação como dispõe o art. 541 atual1.

Diversamente, porém, o art. 1.168 do Código Civil de 1916, fazia remissão à aplicação do art. 134, cujo dispositivo previa a exigência da escritura pública como elemento essencial dos atos translativos de imóveis de valor superior a Cr$50.000,00 (cinquenta mil cruzeiros)2.

Tal correlação e dependência entre os mesmos institutos (doação e escritura pública) não há no novo Código Civil.

Havendo em nosso sistema, uma busca pela circulação de riquezas, pensamos que o legislador entendeu a necessidade de se ampliar o acesso do instituto da doação, facultando a materialização deste contrato por instrumento público ou particular de modo expresso na lei, sem fazer qualquer inclusão remissivo como fazia o Código Civil anterior.

Contudo, ao analisarmos alguns julgados sobre o assunto, vimos uma certa divergência de entendimentos.

A 9ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, por exemplo, negou recurso proposto por M.G.O. que pretendia anular o acordo de doação de parte de um imóvel aos dois filhos menores de idade, firmado em processo de separação consensual. O fundamento para a inexigibilidade da escritura pública baseou-se no argumento de que doação decorrente da livre manifestação de vontade, realizada por instrumento particular homologado judicialmente é válida, eficaz e plenamente executável, caso o doador se negue a efetuar a escritura pública. (Apelação nº 0034746-69.2009.8.26.0068).

Na mesma linha de raciocínio, a 18ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, entendeu que a formalidade da doação, expressa no art. 541 do Código Civil é o suficiente para justificar a doação, sendo que “adotada qualquer uma das formas (pública ou particular), o negócio deve ser levado a registro no Cartório, da situação do imóvel, por força do art. 167, I, item 33, da Lei 6.015/73”. (APELAÇÃO CÍVEL Nº 1.0137.10.000440-7/001 – Comarca de Carlos Chagas – Relator: DES. JOÃO CANCIO j. 20/03/2012).

Em sentido contrário, a 1ª Vara dos Registros Públicos de São Paulo, decidiu por não autorizar o registro de um instrumento particular de doação com reserva de usufruto de imóvel, por entender ser indispensável o uso da escritura pública, fundamentando apenas que o seu valor superava a taxa legal, como está assentado na doutrina e na jurisprudência.3

Seguindo o mesmo raciocínio, no julgamento de dúvida inversa com o intuito de registrar o instrumento particular denominado “termo de doação de imóvel” e de procuração em causa própria, foi ressaltado pelo juízo especializado que em observância à forma prescrita em lei, por envolver direitos reais, a essencialidade do negócio exigiria escritura pública específica, sendo esta pressuposto de validade.4

No mesmo sentido, o Conselho Superior da Magistratura de São Paulo, em julgamento de recurso de apelação que manteve a recusa do registro de instrumento particular de doação de imóvel, fundamentou-se apenas no valor do bem, o qual à luz do art. 108 da Lei Civil, seria de rigor a escritura pública.5

É de se observar nas decisões colacionadas, que os julgados não fazem nenhuma referência sobre a permissão da forma plúrima prevista no art. 541 do Código Civil.

A posição da doutrina, em sua grande maioria, adota a aplicação do artigo 108 do Código Civil, sem aprofundamento do diálogo jurídico com o art. 541 do Código Civil, como se não houvesse diferenças entre as regras do código anterior e o atual.

Jones Figueiredo Alves, defende a forma solene (escritura pública), como essência do ato, nos casos da coisa ser imóvel e com valor superior a trinta salários mínimos, aplicando-se a regra do art. 108 do Código Civil.6

Nelson Rosenvald, segue a mesma linha de pensamento sobre a aplicação do art. 108 do Código Civil, nos casos de doação de imóveis com valor superior aos trinta salários, apesar de afirmar que não resta dúvida sobre o caráter formal da doação em exigir a forma escrita, apontando como referência o julgado do TJSP, Ap. Cível n. 7.302.494.00, rel. Maia Rocha, j. 01.12.2008.7

Caio Mário da Silva Pereira, também seguia a linha da indispensabilidade do instrumento público, nos casos do art. 108 do Código Civil.8

Maria Helena Diniz, afirma ser a doação um contrato solene, no sentido da exigibilidade de ser escrito particular ou público, ressalvando que a escritura pública será necessária, nas hipóteses do art. 108.9

Ulysses da Silva, também segue a linha da aplicabilidade do art. 108 do Código Civil na doação. (Direito Imobiliário: o registro de imóveis e suas atribuições: a nova caminhada – Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Ed., 2008, p. 206)

Paulo Nader, também opina pela exigibilidade da escritura pública quando o objeto for imóvel acima de trinta salários mínimos, apesar de afirmar que o contrato de doação possui natureza formal, uma vez que se exige a escritura pública ou particular, como regra geral, segundo prescreve o caput do art. 541 do Código Civil.10

Inclusive nosso mestre Professor Flavio Tartuce, aduz que a doação será formal e solene no caso de doação de imóveis com valor superior a 30 salários mínimos.11

Em sentido contrário, Carlos Roberto Gonçalves, afirma que a doação, por se tratar de um contrato formal, se aperfeiçoa com o acordo de vontades, podendo ser verbal quando se tratar de bem móvel e de pequeno valor e será solene, ao observar a forma escrita, seja ela particular ou pública.12 A justificativa para tanto é definida pela doação se tratar de um contrato formal ou solene, pela imposição da lei da forma escrita, por instrumento público ou particular (art. 541, caput), salvo a de bens móveis de pequeno valor, que pode ser verbal (parágrafo único).13

Hércules Aguiarian, é bastante objetivo ao afirmar que a doação, quando se tratar de bem imóvel, será um contrato formal ou solene, nos termos do art. 541 do Código Civil, não se aprofundando sobre eventual combinação com o artigo 108 do Código Civil.14

Da interpretação da forma prescrita em lei

Em recente artigo publicado na Revista Brasileira de Direito Contratual nº 13 – ano IV (out-dez 2022) discorremos sobre a necessária revisão na interpretação da forma dos atos e negócios jurídicos, principalmente da redação do artigo 108 do Código Civil.

Cumpre ressaltar que o artigo 107 do Código Civil concede como regra do sistema jurídico civil a liberdade de forma para as declarações de vontade, inclusive nos atos e negócios jurídicos, exceto quando a lei exigir forma especial, sob pena de nulidade (art. 166, inciso IV, Código Civil).

Desse modo, o Código Civil impõe em artigo 104, inciso III, o respeito à forma definida na lei, seja ela única ou plúrima, ou ainda a forma não defesa (livre).

Em consonância com o magistério do Professor Flavio Tartuce, a noção da diferença entre formalidade e solenidade é fundamental para esta compreensão, tendo a solenidade o significado da exigibilidade da presença do delegatário extrajudicial para materialização do ato, ao passo que a formalidade define-se pela exigibilidade de cumprimento de qualquer meio documental para se provar o ato, como o ato escrito, de modo particular ou público, concluindo-se que a forma seria gênero e a solenidade espécie.15

Os atos solenes ou de forma prescrita única, são caracterizados como aqueles em que a presença dos delegatários extrajudiciais é obrigatória ou cogente para materializar os institutos jurídicos, sob pena de nulidade (art. 166, IV, CC), como nos seguintes exemplos: (i) a constituição de renda (art. 807)16; (ii) a constituição do direito real de superfície (art. 1.369)17; (iii) o casamento (art. 1.525)18; (iv) a procuração para casamento (art. 1.542)19; (v) o pacto antenupcial (art. 1.640, parágrafo único)20; (vi) a instituição de bem de família voluntário (art. 1.711)21; (vii) a cessão de direitos hereditários (art. 1.793)22.

Por outro lado, a lei permite a forma plúrima (atos meramente formais, ou escritos), na qual a instrumentalização é facultada por meio de instrumento público ou particular, como é o caso: (i) da cessão de crédito (art. 288)23; (ii) do mandato (art. 657)24; (iii) a sociedade simples (art. 997)25; (iv) a convenção de condomínio edilício (art. 1.334, §1º)26; (v) o compromisso de compra e venda de imóveis (art. 1.417)27 ou sua cessão de direitos (art. 26, lei 6.766/79)28; (vi) o penhor rural (art. 1.438)29; (vii) o reconhecimento de filhos (art. 1.609)30; (viii) a autorização do cônjuge na alienação de bens particulares do outro cônjuge (art. 1.649, parágrafo único)31; (ix) a partilha amigável de herdeiros capazes (art. 2.015)32; ou ainda (x) nos negócios vinculados à alienação fiduciária33.

Ademais, naqueles atos e negócios que necessitam de mais celeridade, a lei em regra, permite a forma livre para se materializarem, como o contrato de locação, cujo objetivo da lei é o cumprimento do direito social da moradia, expresso no art. 6º da Constituição Federal34 ou no caso do mandato (art. 658, Código Civil35). 

Da permissão do instrumento particular pelo artigo 108 do Código Civil

Em nossa perspectiva, o artigo 108 é mal compreendido por sua redação “quase” idêntica com o artigo 134 do Código Civil de 1916. 

Código Civil 1916

Código Civil 2002

Art. 134. É, outro sim, da substância do ato a escriptura publica.

I. Nos pactos antenupciais e nas adoções.

II. Nos contratos constitutivos ou translativos de direitos reais sobre imóveis de valor superior a Cr$50.000,00 (cinqüenta mil cruzeiros), excetuado o penhor agrícola. (Redação dada pela Lei nº 7.104, de 1983)

(…)

Art. 108. Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País.

É evidente que o Código Civil de 1916 exigia a ESCRITURA PÚBLICA para QUALQUER contrato constitutivo (referindo-se aos direitos reais sobre coisas alheias de fruição, como usufruto, uso, habitação, servidão, ou superfície) ou translativo (referindo-se ao direito real sobre coisa própria, melhor dizendo a propriedade), desde que o imóvel fosse superior a determinado valor, excepcionando o penhor agrícola.

Porém, de modo diverso, o artigo 108 do Código Civil, amplia as hipóteses para se exigir a forma pública da escritura ou ato solene, não apenas nos contratos constitutivos ou translativos, mas também nas modificações e renúncias de direitos reais. As modificações de direitos reais referem-se às hipóteses de divisão do imóvel, como o desdobro, loteamento e desmembramento, ou na fusão de imóveis, como a unificação de bens para incorporação imobiliária, e por fim, as renúncias de direitos reais, como nas hipóteses de renúncia de usufruto, uso, habitação e até mesmo a propriedade.

A primeira parte do artigo 108 do Código Civil traz a expressão “Não dispondo a lei em contrário”.

Em nossa interpretação, o significado dessa primeira frase do artigo em comento determina que todo negócio jurídico imobiliário que a lei permitir a forma plúrima (instrumento particular ou público) de forma expressa, afastará a exigibilidade do ato solene ou da escritura pública.

Sendo assim, SERÁ PERMITIDA A FORMA PARTICULAR, nas hipóteses em que a lei de modo genérico, facultar sua instrumentalização, afirmando que o instituto se constituirá por instrumento público ou particular, ou naqueles casos, em que tratar que o será feito por escrito apenas ou ainda por ato “inter vivos”, como na hipótese, da procuração (art. 653), fiança (art. 819), sociedades em comum, nas quais os sócios, nas relações entre si ou com terceiros, somente por escrito podem provar a existência da sociedade (art. 987), assim como as sociedades simples ou empresárias, que se constituem por escrito (art. 997), no caso do penhor pecuário, o qual exige do credor, o prévio consentimento, por escrito, para o devedor poder alienar os animais empenhados (art. 1.445), assim como no penhor industrial, o devedor não pode, sem o consentimento por escrito do credor, alterar as coisas empenhadas ou mudar-lhes a situação, nem delas dispor (art. 1.449), ou no direito de laje, em que exige-se a ciência por escrito dos titulares da construção-base e da laje, em caso de alienação de qualquer das unidades sobrepostas, os quais terão direito de preferência, em igualdade de condições com terceiros (art. 1.510-D).

No entanto, a segunda parte do artigo 108 exige a forma pública ou solene quando estivermos diante de um negócio imobiliário, cuja finalidade for constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais, e que o bem imóvel tenha valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País.

Evidencia-se que a exigência da forma pública ou solene, diferentemente da redação do art. 134, inciso II, do Código Civil de 1916, é afastada quando a lei permitir a forma particular.

Assim, entendemos que a exigibilidade da forma solene ou pública, alcança os institutos jurídicos em que a lei expressamente o exigir, como a constituição de renda (art. 807), a constituição do direito real de superfície (art. 1.369), o casamento (art. 1.525), a procuração para casamento (art. 1.542), o pacto antenupcial (art. 1.640, parágrafo único), a instituição de bem de família voluntário (art. 1.711), ou a cessão de direitos hereditários (art. 1.793), ou naqueles em que a lei se omite por completo, e nessa última hipótese, estarmos diante dos seguintes requisitos – (i) negócio jurídico imobiliário; (ii) objetivo do negócio ser a constituição de direitos reais sobre coisas alheias (hipotecas, usufrutos, superfície, servidão etc) ou transferência, modificação ou extinção de direitos reais sobre coisas próprias (propriedade e laje); (iii) o valor do bem for superior trinta salários mínimos, como é o caso dos negócios imobiliários (compra e venda, permuta, dação em pagamento, hipoteca) de imóveis com valor superior a trinta salários mínimos.

Em nosso raciocínio, demonstra o Código Civil que a materialização da vontade não dependerá de forma especial (forma não defesa), salvo quando a lei exigir de forma expressa (forma prescrita única ou plúrima).36 

Conclusão

Conclui-se que o Novo Código Civil trouxe uma singela diferença entre a forma exigida para a doação de imóveis, no qual não se faz mais a referência ou remissão de subordinação entre a previsão legal da exigibilidade da escritura pública como essência do ato translativo de imóveis.

Além disso, é imperioso esclarecer que o Código Civil atual faz expressa permissão da doação, de bens móveis ou imóveis, por escrito, seja pela forma pública ou particular, fazendo ressalva, no parágrafo único do art. 541 apenas dos bens móveis de pequeno valor, permitindo a forma livre.

Fonte: Migalhas

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