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Artigo: Indisponibilidade de bens – Parte I – Por Sérgio Jacomino

Este artigo examina a história do instituto da indisponibilidade de bens no Brasil e suas repercussões no Registro de Imóveis. Inicialmente concebido para fins muito específicos – como o combate à corrupção e à improbidade administrativa durante a Ditadura Vargas e Regime Militar de 1964 -, foi gradualmente modificado, assumindo uma feição draconiana no processo executivo. Aponta-se a necessidade de revisitar o instituto e estabelecer critérios mais rigorosos para sua aplicação, a fim de evitar o bloqueio indiscriminado de bens e direitos e garantir a livre circulação de bens e riquezas. O artigo discute ainda o impacto da informatização do sistema, que levou a uma explosão no número de inscrições de indisponibilidade de bens, muitas das quais permanecem latentes e sem solução.

Key words: CGI – Comissão Geral de Investigações – Regime Militar. Indisponibilidade de bens. CNIB – Central Nacional de Indisponibilidade de bens. 

Os registradores acham-se diante de uma verdadeira avulsão de inscrições na Plataforma da CNIB – Central Nacional de Indisponibilidade de bens. Na data de hoje registramos mais de 2.4 milhões de inscrições na plataforma e mais de 3.3 milhões de pessoas atingidas, com 205.8 milhões de relatórios emitidos1. Como chegamos a estas cifras assombrosas? Terá havido uma distorção no sistema em razão do modelo adotado? Como este “gravame”2 heterodoxo converteu-se em ferramenta corriqueira no processo executivo, disputando e suplantando figuras tradicionais de arresto e penhora de bens?

No contexto do encontro Indisponibilidade de Bens, promovido pela Fundação Arcadas, da Faculdade de Direito do Largo São Francisco3, Celso Fernandes Campilongo destacou:

“A decretação de indisponibilidade de bens possui enorme virulência. É medida drástica. Tem consequências patrimoniais devastadoras. Por isso, deve ser usada com moderação. Não se pode perder de vista que a intrínseca dose de coerção e violência da indisponibilidade não deve ser percebida apenas como reparação de dano causado à sociedade. Ela é, antes disso, consequência de violação à lei. Adequar o direito ao interesse público não é algo que possa ser feito à margem do direito, com sanha inquisitória e proporções desequilibradas”4.

Mais recentemente, Moacyr Petrocelli bem observou que o instituto foi banalizado e urge que o instituto seja revisitado com a fixação de parâmetros e estabelecimento de critérios consentâneos com o Direito brasileiro para a utilização da ferramenta, que deve ser sempre excepcional. E conclui:

“Não é demais lembrar que à luz do princípio da livre circulação das riquezas, os bens em geral devem permanecer in commercium. Somente em hipóteses mui excepcionais, autorizadas expressamente por lei e mediante ordem fundamentada da autoridade competente, admite-se que bens determinados sejam retirados do comércio, tornando-se indisponíveis por seus titulares”.5

Com razão o registrador paulista. A gravosidade do bloqueio patrimonial, muitas vezes decretado em decorrência de obrigações de bagatela – ou teratológicas, como as originadas de pequenas dívidas trabalhistas que gravam e embaraçam todo o patrimônio de construtoras ou de bancos. Tais ordens acabam por criar empecilhos e obstáculos injustificáveis para a regular atividade de empresas e instituições.

A eletronificação das comunicações produziu a explosão de inscrições e o crescimento inesperado da base de dados com a avultada ocorrência de indisponibilidades que remanescem no sistema num estado de latência. Ou os gravames recidivam a prenotação (quando feita na postagem original na CNIB) ou reagem quando ingressam os títulos em que os atingidos adquirem bens ou direitos. Muitas destas inscrições remanescem no limbo do sistema sem solução. Não há administração racional deste cemitério de inscrições.

A modernização do sistema visou um objetivo: racionalização das comunicações. Ao longo do tempo, formaram-se alentados dossiês produzidos especialmente após o advento da Lei 6.024/1974, multiplicados sucessivamente pelas corregedorias estaduais, pelos corregedores permanentes e diretores do fórum e por fim por registradores de cada comarca brasileira. O modelo era moroso, ineficiente, oneroso, complexo. Não raro havia falhas de comunicação e problemas de interpretação das ordens ou decisões do Banco Central do Brasil. Não havia coincidência nos índices e acervos dos cartórios brasileiros. Além disso, havia serventias criadas muito posteriormente aos primeiros diplomas e que não possuíam a memória das indicações pretéritas.

Há algumas pistas para identificar o ponto de viragem deste instituto outrora consagrado a finalidades muito diversas e específicas – e elas podem revelar o percurso sinuoso que se robusteceu no auge do regime militar de 1964 e se foi enraizando na legislação e, especialmente, espraiando-se no seio da jurisdição.

Mirando a figura do bloqueio ou indisponibilidade de bens numa perspectiva histórica e crítica, pode-se chegar à conclusão de que o sistema deve ser balanceado por medidas corretivas a cargo da Corregedoria Nacional de Justiça. Neste opúsculo introdutório, cingimo-nos ao nascedouro do instituto e na parte complementar vamos enfrentar os problemas concretos decorrentes da implantação da plataforma eletrônica (CNIB). Finalmente, à guisa de conclusão, vamos sugerir algumas medidas para eventual correção de rumos na recepção e tratamento das ordens judiciais postadas nas plataformas eletrônicas.

Indisponibilidade de bens – excurso histórico

a) Ditadura Vargas, tribunais de exceção e a CCA
Antes mesmo da irrupção do movimento político-militar que se instaurou no país a partir de 1964, o Governo Provisório, que se seguiu à revolução de 1930, criaria um tribunal de exceção (“tribunal especial”) dedicado a instaurar processos para julgamento de crimes políticos, funcionais “e outros que serão discriminados na lei da sua organização”.6 Para apuração de crimes ou contravenções relacionados à aplicação ou ao uso indébito ou irregular dos dinheiros ou haveres, advieram diversos decretos que visavam coibir a “prática de improbidade contra a fortuna pública”.7

O Tribunal especial, criado em 1930 e reorganizado em 1931 previa o sequestro de bens como medida assecuratória8 e consideraria nulos de pleno direito, em relação à Fazenda Pública, “todos os atos de alienação, oneração, ou desistência de qualquer bem, direito ou ação, dos responsáveis pela gestão ou aplicação de dinheiros públicos, inclusive membros do Congresso Nacional, ou dos Governos Federal, Estaduais ou Municipais, no período do governo que determinou a Revolução, no que venham a frustrar no todo ou em parte as indenizações a que possam ser obrigados, nos termos deste decreto e mais disposições aplicáveis”.9

Para a efetividade dos processos, previu-se a “indisponibilidade de bens” das pessoas investigadas e processadas.10 Em suas consideranda, o Decreto 19.630/1931 declarava que continuava expressamente proibida “a alienação, ou oneração, de quaisquer bens, moveis, ou imóveis, ações, ou direitos pertencentes às pessoas” a que se referia o Decreto 19.440/1930 (arts. 9º, 12 e 43). Para disposição de bens imóveis atingidos exigia-se a expedição de alvarás pela autoridade competente.11

Em fins de 1931, seria criada a Comissão de Correição Administrativa, que tinha por objetivo proceder à correição dos atos da administração pública, sugerindo às autoridades competentes a aplicação de medidas e sanções previstas no Decreto 20.424/1931.12 Tratava-se de um tribunal de exceção criado para julgar e punir o uso indevido ou irregular dos dinheiros ou haveres públicos e todo ato ou prática de improbidade contra a fortuna pública. A dita Comissão funcionaria até 1934.13

A ideia de confisco e indisponibilidade de bens não era, portanto, uma novidade e a bandeira de moralização da administração pública, livrando-a da nódoa da corrupção, seria agitada na etapa seguinte da república.14

b) Regime Militar de 1964
A história se repetiria em 1964 – e ela seria lembrada nas palavras proferidas por Jarbas Passarinho na momentosa sessão do Conselho de Segurança Nacional que deliberaria a decretação do AI-5. Disse o então ministro do Trabalho e da Previdência Social que via com “certa alegria” que se falasse em confisco de bens daqueles que enriqueceram ilicitamente, invertendo o ônus da prova. “Neste ponto”, disse ele, “parece-me que se deveria repetir a revolução de 1930, quando se deu a esses homens o ônus de provar que os bens lhe pertenciam de direito”.15 Mobilizados sob a ideia motriz de combater a subversão e a corrupção, os militares agitariam a mesma bandeira de moralização dos costumes políticos. Castelo Branco organizaria, no início do movimento militar, o famoso “Livro Branco”, que reuniria provas de corrupção no governo anterior, mas este documento nunca veio a lume, tornando-se “letra morta” – provavelmente porque “seria preciso admitir o envolvimento de militares nos episódios de corrupção que o pretenso livro deveria relatar”.16 As sementes lançadas anteriormente acabaram por germinar nesta nova sazão autoritária com a sucessão de diplomas legais que visavam coibir práticas de malversação de recursos públicos.

A criação da Comissão Geral de Investigações (CGI), nascia nos primeiros meses do regime militar com o advento do Decreto 53.897, de 27/4/1964. O ato tinha por finalidade regulamentar a investigação sumária prevista no § 1º dos artigos 7º e 10º do Ato Institucional n. 1, de 9/4/1964. Esta primeira iniciativa se deu sob a direção do Comando Supremo da Revolução, então chefiado por Costa e Silva. A CGI era composta por representantes da Marinha e do Exército, tendo como seu presidente o marechal Estevão Taurino de Resende, que teria proferido a célebre frase que ficaria gravada nos anais da história daquele período: “O problema mais grave do Brasil não é a subversão. É a corrupção, muito mais difícil de caracterizar, punir e erradicar”17. O móvel que justificava o impulso governamental e fez surgir o bloqueio ou indisponibilidade de bens era a improbidade administrativa e a corrupção – e logicamente o combate à subversão.

Todavia, esta primeira comissão teria vida curta e logo seria extinta pelo Decreto 54.609, de 26/10/1964 (art. 1º). Mais tarde, o AI 5, de 13/12/1968, previu que o Presidente da República poderia, “após investigação, decretar o confisco de bens de todos quantos tenham enriquecido, ilicitamente, no exercício de cargo ou função pública” (art. 8º). Para produzir os elementos de investigação, a CGI seria recriada, agora no âmbito do Ministério da Justiça, pelo Decreto-Lei 359, de 17/9/1968, com a “incumbência de promover investigações sumárias para o confisco de bens de todos quantos tenham enriquecido, ilicitamente, no exercício de cargo ou função pública”. O Decreto-Lei 457, de 7/2/1969, reforçaria que competia à CGI “promover investigações sumárias para o confisco de bens” (art. 1º). Novamente, tratava-se de um verdadeiro tribunal de exceção.18 Paralelamente, no Estado de São Paulo, seria criada a Comissão Estadual de Investigações, instituída no âmbito da Secretaria da Segurança Pública, com finalidades análogas à CGI19.

O Decreto-Lei 359 seria alterado pelo Decreto-Lei 446, de 3/2/1969, e, mais adiante, pelo Decreto-Lei 760, de 13.8.1969, que trataria do processo sumário de confisco. Assim, os atos de aquisição e alienação de bens e direitos por quem tivesse se locupletado e enriquecido ilicitamente por desvio do patrimônio público (art. 8º do AI 5/1968, Ato Complementar 42, de 27 de janeiro de 1969 e arts. 6º e 11 do Decreto-lei referido) seriam declarados nulos de pleno direito, alcançando, inclusive, os bens que se achassem em posse de terceiros de boa-fé, assegurado o direito de regresso (art. 8º do DL 359/1968). Com a declaração de nulidade, publicado por meio de decreto presidencial no Diário Oficial, os Oficiais de Registro de Imóveis deveriam promover a transcrição em nome da pessoa jurídica de direito público, sob pena de prevaricação. Eis a redação do art. 5º do DL 359/1969:

Art. 5º Encerrada a investigação, se a Comissão concluir pela existência de enriquecimento ilícito, proporá ao Presidente da República a expedição de decreto, com a especificação dos bens a serem confiscados e dos atos de alienação ou oneração de bens a serem declarados nulos.

§ 1º Publicado o decreto no Diário Oficial, os registros competentes, no prazo de sessenta dias, providenciarão, de ofício, a transcrição dos bens em nome da pessoa jurídica de direito público em favor da qual haja sido decretado o confisco, remetendo-lhe as respectivas certidões.

§ 2º A inobservância do disposto no parágrafo anterior configurará crime de prevaricação.

Decorridos mais de uma década, a CGI seria afinal extinta, no final do governo Geisel, pelo Decreto 82.961, de 29/12/1978, em razão da revogação dos Atos Institucionais e Complementares pela Emenda Constitucional 11/1978 (art. 3º), como veremos mais abaixo. Como lembra Falcão, “mexendo com tanta gente graúda”, os processos originados na CGI mergulhariam “no sono do túmulo da Secretaria-Geral do Conselho de Segurança Nacional”.20

A CGI e os cartórios
Os cartórios de Registro de Imóveis, desde muito cedo, enfrentaram o problema da inscrição dos atos que decretavam o confisco e a indisponibilidade de bens. Contudo, somente a partir do advento do Decreto-Lei 502, de 17/3/1969, que os Ofícios Prediais seriam obrigados a manter um cadastro sigiloso21, de caráter preparatório, organizado com vistas a “separar bens que assegurem, no futuro, a plena execução do ato de confisco”. Rezava o seu artigo 1º:

Art. 1º Tão logo seja decretado o confisco de bens pelo Presidente da República, os órgãos mencionados nos itens abaixo não poderão:

I – Os Registros de imóveis, fazer transcrições, inscrições ou averbações de documentos públicos ou particulares relativos aos bens confiscados, ou de quaisquer atos ou contratos em sejam interessados pessoas naturais ou jurídicas, cujos bens tenham sido objeto de confisco;

(…)

Parágrafo único. A violação do disposto no artigo 1º deste Decreto-lei tornará o infrator passível do crime previsto no artigo 319 do Código Penal [prevaricação], além da perda do cargo.

Art. 2º A Comissão Geral de Investigação poderá, pelo seu Presidente, se assim julgar conveniente e durante o curso da investigação sumária, notificar aos órgãos mencionados no artigo 1º deste Decreto-lei da existência do processo de confisco e determinar, desde logo, as providências contidas nesse dispositivo.

Pelo Decreto 64.203, de 17/3/1969, seria aprovado o Regulamento da CGI. As disposições relativas aos Registros Imobiliários se acham nos artigos 34 e 35, disposições análogas ao disposto no art. 1º Decreto-Lei 502, de 17/3/1969.22

Os cartórios de Registro de Imóveis ficavam impedidos, sob pena de perda do cargo por crime de prevaricação, de praticar quaisquer atos (transcrições, inscrições, averbações) relativamente aos bens confiscados ou bloqueados no curso da investigação.

Em face de tão gravosas consequências, alguns Oficiais sentiam-se inseguros acerca da extensão das determinações emanadas das autoridades e consultavam o juízo da corregedoria permanente.23 Além disso, qual seria a extensão do sigilo que guardava as determinações de indisponibilidade? Afinal, os cartórios deveriam expedir certidões dos atos de registro, quando instados. A certidão, após mencionar a existência, ou não, de ônus de qualquer natureza deveria “acrescentar, sem nenhum prejuízo da quebra do sigilo, proveniente do caráter confidencial do documento, que ditos bens são indisponíveis por força de ato do Governo Federal”. Afinal, os Registros Públicos, “precisamente por serem públicos, não possuem segredos. Tudo o que neles se trata é de acesso ao público (arts. 16 e segs. [da LRP]), pois de outra forma seria impossível atingir a finalidade de segurança e eficácia dos atos jurídicos, que está na sua essência (art. 1º). Quem vai negociar um imóvel tem o direito de ser informado das restrições acaso incidentes na disponibilidade. Para esse fim é que a repartição existe”.24

A fim de promover diligências, sindicâncias, exames ou investigações, visando a apurar a prática de enriquecimento ilícito, como previsto no artigo 8º do AI 5/1968 e Ato Complementar 42/1969, a CGI criaria Subcomissões Gerais de Investigações, cujas instruções foram aprovadas pela Resolução Colegiada n. 23, de 11 de abril de 197325, que entraria em vigor a partir de 11 de maio do mesmo ano.

A partir de então, os cartórios passariam a receber a visita de investigadores que buscavam obter, sempre de forma sigilosa, informações sobre os investigados. Assim previa o art. 31 da Resolução 23/1973:

Art. 31 – Sempre que, no curso da Investigação Sumária, forem apurados indícios de aumento patrimonial, sem idoneidade financeira, a Subcomissão deverá incluir nos autos uma análise das mutações patrimoniais do indiciado, confrontadas com a receita por ele obtida em cada ano.

Parágrafo único  – O estudo das variações patrimoniais será realizado em face de dados informativos da Secretaria da Receita Federal do Ministério da Fazenda, dos Registros de Imóveis, dos Registros de Comércio e de outras fontes idóneas.

Finalmente, após as investigações, discutida a matéria em plenário, o Presidente submeteria as conclusões à apreciação do colegiado, seguindo-se a votação do relatório final. A Subcomissão deveria concluir pela existência ou inexistência de enriquecimento ilícito (art. 39); no caso positivo, deveria apresentar “proposta de confisco”, devendo observar o seguinte:

c)  – individualizar, para confisco, os bens pertencentes ao indiciado, juntando certidões do Registro de Imóveis, quando for o caso;

d)  – discriminar os atos de alienação e de oneração de bens imóveis a serem declarados nulos, na forma da lei, juntando as correspondentes certidões do Registro de Imóveis.

As visitas aos Cartório eram feitas por “agentes credenciados” que diligenciavam a obtenção de informações sobre o patrimônio imobiliário de pessoas arroladas em listas e fichas padronizadas, especialmente preparadas pelos órgãos de informação26.

[A CGI e a CGJSP – continua parte II]

Fonte: Migalhas

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