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Artigo: Marco legal das garantias e recuperação judicial – Por Camila Tebaldi e Ramon Barbosa Baptistella

No Brasil, a discussão sobre o valor do crédito destaca a baixa recuperabilidade e o acesso limitado, levando à promulgação da Lei 14.711/2023, conhecida como “Marco Legal das Garantias”.

A discussão sobre o valor do crédito no Brasil não é um tema recente. Se, por um lado a recuperabilidade do crédito dos tomadores é bastante baixa de forma a impactar o custo envolvido, por outro lado, o acesso ao crédito limita e intimida substancialmente empresas e pessoas físicas, que sofrem pela inacessibilidade de capital e precisam lidar sempre com expressivas taxas de juros na hora de conseguirem um financiamento privado.

Segundo o relatório apresentado pelo Banco Central, as garantias estão diretamente relacionadas à capacidade das instituições financeiras de recuperar a dívida não paga, de forma a impactar, portanto, no cálculo do valor envolvido no financiamento1. Neste contexto, visando incentivar a circulação do crédito assim como a imprescindível recuperabilidade dele, foi promulgada a lei 14.711/23, que ficou conhecida com o “Marco Legal das Garantias”.

O Marco Legal das Garantias promoveu uma série de alterações em matéria de garantia, dentre essas, houve uma alteração considerável na lei 9.514/97, que trata sobre a alienação fiduciária de imóveis. Na nova redação atribuída ao art. 22 da lei 9.514/97 foi disciplinada a possibilidade de realização de alienações fiduciárias sucessivas sobre um mesmo imóvel2.  

Dessa forma, o Marco Legal das Garantias deu segurança jurídica para a possibilidade de garantias fiduciárias sucessivas a um mesmo imóvel3,  algo que era controverso até então. O Marco também estabeleceu a prioridade em relação aos credores, incluindo uma regra de anterioridade no art. 22, § 4º, da lei 9.514/974.  Estabelece o dispositivo que “[h]avendo alienações fiduciárias sucessivas da propriedade superveniente, as anteriores terão prioridade em relação às posteriores na excussão da garantia, observado que, no caso de excussão do imóvel pelo credor fiduciário anterior com alienação a terceiros, os direitos dos credores fiduciários posteriores sub-rogam-se no preço obtido, cancelando-se os registros das respectivas alienações fiduciárias”. 

Embora a previsão de garantia sucessiva tenha sido incluída apenas no contexto da lei que disciplina a alienação fiduciária de bens imóveis, Carlos Eduardo Elias de Oliveira defende a possibilidade de subalienações fiduciárias também para bens móveis. Segundo o autor, “[a]pesar do silêncio da Lei das Garantias, entendemos que as subalienações fiduciárias em garantia de bens móveis são plenamente admissíveis, porque a alienação de coisa futura é permitida pelo nosso ordenamento, especialmente pelo art. 483 do CC. O outro caminho que chegaria a resultado prático similar é a realização de cessão fiduciária (que pode ser sucessiva) do direito real de aquisição pelo devedor fiduciante5”. 

Além das alterações promovidas nas legislações esparsas, outra inovação da lei 14.711/23 diz respeito à regulamentação do concurso simples de credores na hipótese de diversos créditos garantidos por um mesmo imóvel em alienação fiduciária. Nesse caso, disciplina o art. 10 do Marco Legal das Garantias6,  que é necessária a elaboração de um quadro de credores pelo oficial do registro de imóveis, “que incluirá os créditos e os graus de prioridade sobre o produto da excussão da garantia, observada a antiguidade do crédito real como parâmetro na definição desses graus de prioridade”. A distribuição dos recursos obtidos a partir da excussão da garantia fica a cargo do credor exequente.

Por se tratar de um concurso simples, essa disciplina não será aplicada nos casos previstos pela lei 11.101/05. Dito isso, cabe analisar como as alterações promovidas pelo Marco Legal das Garantias podem afetar o crédito detido pelo credor possuidor de garantia fiduciária na recuperação judicial. 

Na recuperação judicial estão sujeitos todos os créditos existentes na data do pedido. Dentre as exceções previstas, o art. 49, § 3º, exclui da recuperação judicial, o credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis7.  Cabe destacar que o Marco Legal das Garantias incluiu o § 10 ao art. 22 da lei 9.514/97, segundo o qual “[o] disposto no § 3º do art. 49 da lei 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, beneficia todos os credores fiduciários, mesmo aqueles decorrentes da alienação fiduciária da propriedade superveniente”. 

Nesse contexto, caso a garantia fiduciária efetivamente constituída não seja suficiente para a satisfação da dívida extraconcursal, eventual valor da dívida que esteja descoberto será enquadrado como crédito quirografário, sujeito aos efeitos da recuperação judicial – entendimento que pode ser associado a uma aplicação analógica do art. 83, VI, “b”, da lei 11.101/058.  

É o que estabelece o Enunciado 51 da I Jornada de Direito Comercial do Conselho da Justiça Federal – CJF: “O saldo do crédito não coberto pelo valor do bem e/ou da garantia dos contratos previstos no §3º do art. 49 da lei 11.101/05 é crédito quirografário, sujeito à recuperação judicial”.

Em 2021, o STJ veiculou no Informativo de Jurisprudência 720 entendimento semelhante, segundo o qual “[o]s credores fiduciários estão excluídos dos efeitos da recuperação judicial somente em relação ao montante alcançado pelos bens alienados em garantia”. Confira ementa do julgado que originou o informativo: 

RECURSO ESPECIAL. EMPRESARIAL. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. PERDA DO OBJETO. NÃO OCORRÊNCIA. CRÉDITO GARANTIDO POR ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. EXTRACONCURSALIDADE. OBJETO DA GARANTIA. LIMITES. AVALISTAS.

Recurso especial interposto contra acórdão publicado na vigência do Código de Processo Civil de 2015 (Enunciados Administrativos nºs 2 e 3/STJ).
Cinge-se a controvérsia a definir se a natureza extraconcursal do crédito garantido por alienação fiduciária se limita aos bens alienados em garantia e se pode ser exigido dos avalistas em recuperação judicial.
Não havendo decisão definitiva acerca da natureza do crédito e os limites da extraconcursalidade, não é possível falar em perda de objeto do presente recurso especial.
Os credores fiduciários estão excluídos dos efeitos da recuperação judicial somente em relação ao montante alcançado pelos bens alienados em garantia.
Na hipótese, as avalistas estão em recuperação judicial e os bens alienados em garantia não lhes pertencem, motivo pelo qual não podem ser expropriados outros bens de sua titularidade, pois devem servir ao pagamento de todos os credores.
Recurso especial conhecido e não provido. 9-10
Ou seja, é pacífico o entendimento de que em sede de análise do crédito, somente será extraconcursal o montante correspondente ao valor dado em garantia, sujeitando-se aos efeitos da recuperação judicial, portanto, o valor remanescente, que será classificado como quirografário no quadro geral de credores. Vale ressaltar que essa discussão se torna especialmente complexa quando o bem dado em garantia é considerado essencial para o soerguimento da devedora, impossibilitando a excussão durante o stay period, e consequente atribuição do valor de mercado do ativo. 

Feitas essas considerações, o Marco Legal das Garantias dá ainda maior complexidade ao debate sobre o valor do bem dado a garantia fiduciária na recuperação judicial. Isso, pois, a partir de agora o mesmo bem pode possuir garantias sucessivas, de modo que é necessário compreender o seu valor para então concluir até qual credor seria contemplado com valores decorrentes de uma possível excussão. Consequentemente, esse debate também define quais credores serão ou não sujeitos aos efeitos da recuperação judicial. 

Apesar da disposição expressa de que o art. 49, § 3º, da lei 11.101/05 é aplicável aos credores detentores de alienação fiduciária sucessiva, nos termos do art. 22, § 10, da lei 9.514/97, parece permanecer válido o entendimento de que o crédito apenas não será sujeito aos efeitos da recuperação judicial pelo montante garantido pela alienação fiduciária. Em outras palavras, o novo dispositivo assegura que a garantia fiduciária não será apenas do primeiro credor na ordem de prioridade, fato que, na prática, pode afetar substancialmente a análise dos créditos e a própria relação de credores do devedor, uma vez que o dispositivo não especifica que a extraconcursalidade apenas poderá ser reconhecida para primeiro credor com registro ou credores que efetivamente receberiam parte do valor resultante da excussão da garantia fiduciária. 

O impacto prático do novo dispositivo legal, que permite as sucessivas alienações fiduciárias, pode ser bastante desastroso, na medida em que um único ativo garante a exclusão de diversos credores, sem, contudo, regular expressamente de que modo os credores com a garantia subsequente podem usufruir da mesma condição. Essa questão em sede de recuperação judicial impacta não só a forma de pagamento desse credor, como a sua condição (ou não) de credor votante do plano de recuperação judicial.

Embora a discussão ocorra de forma incidental, pode haver grande impacto na recuperação judicial. Isso, pois, os credores detentores de garantia podem apresentar valor expressivo em créditos em face da devedora em recuperação, de modo que a definição da sua sujeição ou não aos efeitos da recuperação judicial venha a afetar diretamente o quórum de aprovação do plano de recuperação judicial. Além disso, a definição do montante de crédito sujeito ou não aos efeitos da recuperação podem interferir diretamente nas estratégias de soerguimento do devedor. 

Em síntese, o Marco Legal das Garantias possibilitou a existência de garantias fiduciárias sucessivas em relação à bens imóveis, existindo abertura para defender também que isso ocorra em relação à bens móveis. Com isso, a discussão quanto ao crédito coberto pela garantia fiduciária na recuperação judicial, e a sua consequente não sujeição aos efeitos da recuperação judicial ganhou ainda mais complexidade, diante da possibilidade de existirem diversos credores garantidos por um mesmo ativo. 


1 Estudos Especiais do Banco Central – Garantias e Diferenças nas Taxas de Juros. Disponível em: https://www.bcb.gov.br/conteudo/relatorioinflacao/EstudosEspeciais/EE043_Garantias_e_diferencas_nas_taxas_de_juros_de_credito.pdf

2 Art. 22 – A alienação fiduciária regulada por esta Lei é o negócio jurídico pelo qual o fiduciante, com o escopo de garantia de obrigação própria ou de terceiro, contrata a transferência ao credor, ou fiduciário, da propriedade resolúvel de coisa imóvel. (…)

§ 3º A alienação fiduciária da propriedade superveniente, adquirida pelo fiduciante, é suscetível de registro no registro de imóveis desde a data de sua celebração, tornando-se eficaz a partir do cancelamento da propriedade fiduciária anteriormente constituída.   

3 Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/396561/marco-das-garantias-promove-seguranca-juridica-dizem-especialistas

4 Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/396248/com-vetos-lula-sanciona-marco-legal-das-garantias

5 Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-notariais-e-registrais/396275/lei-das-garantias-lei-14-711-23–uma-analise-detalhada

6 Art. 10 – Quando houver mais de um crédito garantido pelo mesmo imóvel, realizadas averbações de início da excussão extrajudicial da garantia hipotecária ou, se for o caso, de consolidação da propriedade em decorrência da execução extrajudicial da propriedade fiduciária, o oficial do registro de imóveis competente intimará simultaneamente todos os credores concorrentes para habilitarem os seus créditos, no prazo de 15 (quinze) dias, contado da data de intimação, por meio de requerimento que contenha:

I – o cálculo do valor atualizado do crédito para excussão da garantia, incluídos os seus acessórios;

II – os documentos comprobatórios do desembolso e do saldo devedor, quando se tratar de crédito pecuniário futuro, condicionado ou rotativo; e

III – a sentença judicial ou arbitral que tornar líquido e certo o montante devido, quando ilíquida a obrigação garantida.

§ 1º Decorrido o prazo de que trata o caput deste artigo, o oficial do registro de imóveis lavrará a certidão correspondente e intimará o garantidor e todos os credores em concurso quanto ao quadro atualizado de credores, que incluirá os créditos e os graus de prioridade sobre o produto da excussão da garantia, observada a antiguidade do crédito real como parâmetro na definição desses graus de prioridade.

§ 2º A distribuição dos recursos obtidos a partir da excussão da garantia aos credores, com prioridade, ao fiduciante ou ao hipotecante, ficará a cargo do credor exequente, que deverá observar os graus de prioridade estabelecidos no quadro de credores e os prazos legais para a entrega ao devedor da quantia remanescente após o pagamento dos credores nas hipóteses, conforme o caso, de execução extrajudicial da propriedade fiduciária ou de execução extrajudicial da garantia hipotecária.

7 Art. 49 – Estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos. (…)

§ 3º Tratando-se de credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis, de arrendador mercantil, de proprietário ou promitente vendedor de imóvel cujos respectivos contratos contenham cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade, inclusive em incorporações imobiliárias, ou de proprietário em contrato de venda com reserva de domínio, seu crédito não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais, observada a legislação respectiva, não se permitindo, contudo, durante o prazo de suspensão a que se refere o

8 Art. 83 – A classificação dos créditos na falência obedece à seguinte ordem: (…)

VI – os créditos quirografários, a saber:     

a) aqueles não previstos nos demais incisos deste artigo;

b) os saldos dos créditos não cobertos pelo produto da alienação dos bens vinculados ao seu pagamento; e      

c) os saldos dos créditos derivados da legislação trabalhista que excederem o limite estabelecido no inciso I do caput deste artigo;     

9 STJ. REsp nº 1.953.180/SP. Relator: Min. Ricardo Villas Bôas Cueva. 3ª Turma. Julgado em 25.11.2021. DJ em 01.12.2021.

10 Outros julgados do STJ que caminham na mesma direção: (i) STJ. AgInt no AREsp nº 1.810.708/SP. Relator: Min. Moura Ribeiro. 3ª Turma. Julgamento em 15.05.2023. DJ em 17.05.2023; (ii) STJ. AgInt no AREsp nº 2.078.718/GO. Relator: Min. Marco Buzzi. 4ª Turma. Julgamento em 20.03.2023. DJ em 23.03.2023; (iii) STJ. AgInt nos EDcl no REsp nº 1.906.248/BA. Relator: Min. Ricardo Villas Bôas Cueva. 3ª Turma. Julgamento em 27.06.2022. DJ em 30.06.2022; (iv) STJ. REsp nº 1.933.995/SP. Relatora: Min. Nancy Andrighi. 3ª Turma. Julgamento em 25.11.2021. Dj em 09.12.2021; e (v) STJ. CC nº 128.194/GO. Relator: Des. Raul Araújo. 2ª Seção. Julgamento em 28.06.2017. DJ em 01.08.2017.

Fonte: Migalhas

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