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Artigo: Microssistema de solidificação de direitos no registro de imóveis – Rodrigo Esperança Borba

Ante valores e princípios comungados pelos institutos extrajudiciais existentes nos registros de imóveis, há um verdadeiro microssistema de estabilização e concretização de direitos em tal seara.

I – Introdução

As atividades notariais e de registros públicos vem ganhando cada vez mais protagonismo na constante luta pela maior eficiência do Judiciário brasileiro.

A conhecida “desjudicialização” vem se mostrando bem sucedida ao longo dos anos, emplacando um instituto atrás do outro, com o objetivo final de desafogar o Judiciário e trazer uma resposta mais dinâmica aos anseios da população.

E no presente momento já é possível a identificação de um verdadeiro sistema de estabilização de relações jurídicas no registro de imóveis, como se demonstrará a seguir. 

II – Extrajudicialização: congestionamento do Judiciário + demandas sem conflitos

De início, esclareça-se que se preferirá neste texto a expressão “extrajudicialização”, já usada por agentes da atividade, em vez de “desjudicialização”. É que esse último termo pode dar uma conotação equivocada aos menos atentos, pois não se está transferindo competência do Judiciário para os delegatários de serviços de notas e registros públicos. Não é o que se pretende e, caso contrário, seria flagrantemente inconstitucional, ante os termos do art. 5, XXXV, de nossa Constituição (CR/88).

O prefixo “extra” significa “além de”, sendo mais consentâneo com a realidade que o prefixo “des”, o qual indica ideia de negação ou reversão. E, ademais, é assim que a atividade é conhecida no jargão jurídico: serviço “extrajudicial”, cartórios “extrajudiciais”.

Esse movimento, a que se ora chama de extrajudicialização, não é novo, mas ganhou grande impulso a partir do final do último século.

O que se logra com os institutos que compõem essa tendência é abrir portas alternativas à população para que, em um ambiente em que não se verifique conflito de interesses, essa possa ter acesso a instrumentos jurídicos mais rápidos, embora igualmente seguros e garantidores dos seus direitos, sem ter que sobrecarregar a atividade jurisdicional.

Campo fértil para isso é o que tradicionalmente se denomina como “jurisdição voluntária”, que constitui, em verdade, uma administração de interesses privados. De “voluntária” nada tem, pois são procedimentos necessários para o exercício da vontade da parte. É uma tutela que o Estado faz, por meio do juiz, em geral no sentido de que formalidades legais sejam observadas e de que não haja prejuízo para o Estado ou terceiros.

É sabido que a Constituição de 1988, não a toa apelidada de “cidadã”, preocupou-se em garantir o acesso irrestrito ao Judiciário a qualquer lesão, ou ameaça de lesão, a direitos. E com isso o crescimento dos processos judiciais subiu exponencialmente1, sendo, apesar da ótima qualificação dos servidores e magistrados que compõem os quadros de pessoal do Judiciário, humanamente impossível a entrega do serviço jurisdicional em tempo razoável aos litigantes.

A possível solução para isso passa pela abertura de alternativas fora do Judiciário para demandas em que não haja conflitos, além, claro, de normas inteligentes acerca de demandas repetitivas, coletivas, e até mesmo a adoção de ferramentas tecnológicas de automação e inteligência artificial. 

III – “Cartórios” são ideais para absorver demandas não conflituosas antes apenas resolvidas no Judiciário

Pelo conceito de “jurisdição voluntária” já se vê que essa administração pública  de interesses privados é passível de ser bem desempenhada por delegatários de notas e registros públicos.

Elencam-se os seguintes motivos para isso:

a) são profissionais do direito qualificados, pois são selecionados por rigorosos concursos públicos nos quais são aferidos os seus conhecimentos jurídicos;

b) prestam serviço público, delegado pelo Estado, embora por gestão privada.

c) são detentores de fé pública, ou seja, o ordenamento jurídico lhes concede o poder de formação de atos dotados de presunção de veracidade e legalidade.

d) gozam de independência, idoneidade e especial responsabilidade pelos atos que praticam, ante a forma meritória de assunção da delegação, e os direitos e obrigações atinentes ao exercício do serviço;

e) segurança jurídica e prevenção de litígios são os escopos deles;

f) possuem grande capilaridade. São mais de 13 mil cartórios extrajudiciais no país, sendo que toda cidade possui ao menos um cartório (Lei n. 8.935/94, art. 44, § 2º)

g) não custam nenhum centavo para o erário público, uma vez que são custeados pelo pagamento de emolumentos, e ainda, pelo contrário, promovem o recolhimento para o Estado de valores acrescidos aos emolumentos sob a rubrica de “fundos públicos”. E quando os atos são gratuitos suportam integralmente o custo, sem qualquer dispêndio de recursos públicos (e são muitos os casos).

Por tudo isso é que esses agentes estão se mostrando bastante eficientes na concretização de institutos extrajudicializantes em ambientes no qual não há conflitos de interesses.

IV – Institutos concretizadores da extrajudicialização 

Não se costuma lembrar em digressões sobre a matéria, mas o fato é que já no longínquo ano de 1979 o legislador lançou mão de instituto extrajudicializador com a previsão do art. 27 na Lei 6.766/79 (adjudicação compulsória extrajudicial no âmbito dos loteamentos).

E a partir do fim da década de 90 essa tendência foi retomada e, ante o sucesso a cada novo instituto criado, fortalecida. Vieram então, nessa toada: a arbitragem (Lei 9.307/96); a alienação fiduciária em garantia (Lei 9.514/97); a retificação administrativa de matrículas (Lei 10.931/04); divórcios, inventários e partilhas (Lei 11.441/07); usucapião extrajudicial em regularizações fundiárias (Lei 11.977/09, art. 60, atualmente Lei 13465/17, art. 26); reconhecimento extrajudicial de paternidade (Provimento CNJ 16/12; inclusão expressa de certidões de dívida ativa (CDA’s) no rol de títulos protestáveis (Lei 12.767/12); usucapião extrajudicial “comum” (novo CPC, Lei 13.105/15, art. 1071); possibilidade de mediação e conciliação (Provimento CNJ 67/18); alteração extrajudicial de nome (Lei  14.382/22); adjudicação compulsória extrajudicial “geral” (Lei 14.382/22);  e cancelamento de promessa de compra e venda com efeito determinante para a imissão na posse (Lei 14.382/22).

Enxergando-se em conjunto os institutos acima referentes à atuação do registro de imóveis, é possível se detectar a existência de um verdadeiro sistema destinado a estabilizar relações jurídicas pendentes de alguma formalização ou adimplência em tal seara. É a isso que denomino “microssistema de solidificação de direitos no registro de imóveis”. 

V – Microssistema de solidificação de direitos no registro de imóveis.

O termo “sistema” no meio jurídico denota a ideia de um conjunto de regras e princípios imbuídos por valores em comum, que regulam determinado tópico de relações fáticas. O objetivo comum dos princípios e regras dispostas para esses institutos faz com que esses sejam estruturados e interpretados de forma harmônica e interdependente.

Ter em mente com clareza o que são valores, princípios e regras é premissa indispensável para se entender o que ora se propõe. Porém, ante o restrito intento do presente texto, apenas se remete à conclusão deste autor já exposta em trabalho próprio:

[…} enquanto valor corresponde àquilo que “é”, princípio é aquilo que “deve ser”, ou seja, um caminho para atingir dado valor.

E os meios dos quais se vale o direito para alcançar determinados valores são justamente as normas, que se dividem em princípios e regras, pois ambos veiculam o “dever-ser”, constituindo, portanto, conceitos deontológicos.2 

Daí poder ser o direito dividido em diversos ramos, segundo os sistemas identificados nele (exemplos: direito civil, penal, processual, empresarial, tributário, administrativo, notarial e registral).

Há um verdadeiro sistema notarial e registral, pois, como bastante difundido, há valores próprios a imbuir princípios e normas sobre a atuação dos agentes atuantes nesse sistema e a condicionar suas interpretações.

Assim é que podem ser indicados como valores do direito notarial e registral a segurança jurídica e a prevenção de litígios. Esse é o substrato axiológico ao qual é voltado todo o seu sistema de normas (princípios e regras).

O substrato deontológico é composto das regras que perfazem todo o arcabouço de leis e normas administrativas inerentes à sua atividade e princípios já consolidados e difundidos em diplomas legais e em todo texto acadêmico que se debruça sobre tal atividade.

Cita-se alguns dos princípios mais reverenciados pela doutrina e julgados de tal seara, ora referente apenas à atuação notarial, ora à atuação de registros públicos, e ora a ambas: legalidade, autenticidade ou legitimação, autoria e responsabilidade, imparcialidade e independência, unicidade do ato, conservação, dever de exercício, da rogação, da inscrição, da unitariedade da matrícula, da territorialidade, da publicidade, da prioridade, da continuidade, da especialidade, da disponibilidade, da cindibilidade do título, da veracidade, da eficácia da vontade, do tempus regit actum, da concentração, da eficiência, e da oponibilidade, entre outras nominações e perspectivas que se possam usar.

Inserido nesse sistema constata-se haver um verdadeiro microssistema de solidificação de direitos no registro de imóveis, formado por alguns dos institutos extrajudicializantes citados no item IV acima.

Os valores fundamentais adotados por esse microssistema são a segurança jurídica e a prevenção de litígios, como, de resto, o sistema notarial e registral.

Mas, para se alcançar esses valores, além de todos os princípios inerentes ao registro imobiliário encartados na lista acima mencionada, destacam-se aqui os princípios da eficiência, da economia procedimental, da veracidade, da presunção de consenso, e da estabilização de relações jurídicas, tudo, claro, a ser levado a efeito pelo registro de imóveis.

Esses princípios, juntamente com as regras previstas a cada novo instituto extrajudicializante no registro de imóveis, formam um microssistema dentro do qual devem dialogar, suprindo aparentes lacunas normativas eventualmente advindas da análise isolada de algum desses institutos.

São os seguintes institutos que compõem o mencionado microssistema, expostos na ordem cronológica de seus adventos:

a) Registro de promessa não cumprida como contrato definitivo em loteamento (Lei 6.766/79, art. 27).

Isso mesmo, no longínquo ano de 1979 já foi prevista uma adjudicação compulsória extrajudicial, que agora volta a estar em voga com a Lei n. 14.382/22. Para fins de cumprimento de promessa de compra e venda de imóvel oriundo de loteamento já existe essa ferramenta desde então. Caso não cumprida a obrigação de se celebrar o negócio definitivo, o próprio instrumento de promessa é usado no registro de imóveis para solidificar esse direito, estabilizando-se a relação jurídica antes pendente.

b)  Alienação fiduciária de imóveis em garantia. (Lei 9.514/97)

Nada menos que o melhor instrumento de garantia existente em nosso país, que proveu grande impulso na dinamicidade do mercado negocial, desaguando em mais facilidade para obtenção de empréstimos e até queda de juros, pois se trata de instituto com procedimento de rápida execução e resolução em caso de inadimplência3. A resposta à inadimplência é concretizada ali mesmo no âmbito do registro de imóveis, estabilizando-se a situação jurídica antes enferma.

c) Retificação administrativa de matrículas de imóveis. (Lei 10.931/04)

Antes dessa lei, para simples retificações de dados em matrículas de imóveis, era necessária decisão judicial. Uma descrição incorreta do imóvel na matrícula leva à impossibilidade de sua disposição firmada na veracidade. Com a retificação, a situação jurídica imprecisa agora ganha veracidade, o que otimiza a disponibilidade do bem, e a proteção ao titular do direito e a terceiros, inclusive prevenindo possíveis litígios.

d) Usucapião extrajudicial em regularizações fundiárias (Lei 11.977/09, art. 60, e atualmente na Lei 13465/17, art. 26)

A primeva experiência de usucapião extrajudicial no registro de imóveis nasceu como um dos instrumentos de regularização fundiária. O próprio termo “regularização” já carrega a natureza de curar enfermidade formal que tornava incerto o direito da pessoa beneficiada.

e) Usucapião Extrajudicial “comum” (Novo CPC, Lei 13.105/15, art. 1071)

O novo CPC estendeu a usucapião extrajudicial para todas as espécies desse direito material ao criar o art. 216-A na Lei n. 6.015/73. Tudo se passa no registro de imóveis, e, não havendo impugnações, solidifica-se o direito de propriedade de quem está há um grande lapso de tempo vivendo em um imóvel em situação de informalidade. Estabiliza-se o seu direito de propriedade.

f) Adjudicação Compulsória Extrajudicial (Lei 14.382/22)

Criada ao lado da usucapião, no art. 216-B, da Lei 6015/73, trouxe para o registro de imóveis agora a adjudicação compulsória extrajudicial “geral” (antes já havia a da Lei 6.766/73). Assim, a situação jurídica do vendedor, ou do comprador, e eventuais cessionários, pode se estabilizar mesmo caso a outra parte se omita ao não celebrar o negócio definitivo, ou simplesmente desapareça.

g) Cancelamento de promessa de compra e venda para imissão na posse (Lei 14.382/22).

Mais um instituto criado pela lei 14.382/22, com a inserção do art. 251-A, lei 6015/73. Confere uma grande força jurídica ao registro de contratos de promessa de compra e venda, dotando o vendedor de um efeito dinamizador do seu direito de posse no caso de inadimplência. Havendo a inadimplência formada no âmbito do registro de imóveis, dá-se o cancelamento ali mesmo do registro da promessa e tal fato constituirá, conforme diz o seu parágrafo 6º, “prova relevante ou determinante para concessão da medida liminar de reintegração de posse”.

Como se vê, tal instituto é agora um valioso instrumento de estabilização do direito do promitente vendedor em caso de contrato inadimplido (desde que registrado). Frise-se que nesse caso, como poderá haver a necessidade de força para a imissão na posse, o registro de imóveis apenas forma um título cuja real eficiência dependerá de como os juízes o observarão ao decidirem pedidos fundados nele em pedidos de cautela de urgência.

Observe-se que nesses institutos há a atuação otimizada do registro de imóveis para estabilizar alguma situação jurídica pendente ou ainda informalizada, sendo a inércia de potenciais litigantes tida como presunção de consenso. Com isso, confere-se títulos formais aos interessados, que passam, então, a ter total disponibilidade sobre o bem, o qual agora pode seguir no normal tráfego negocial.

De se ver que tal microssistema é um combustível ao incremento de movimento no ambiente de negócios, uma vez que bens imóveis são garantias fundamentais ao fomento de concessão de crédito, dinamizando e estabilizando situações que antes eram relegadas a adentrar na volumosa fila de demandas judiciais ordinárias.


1 Conselho Nacional de Justiça. Justiça em Números 2022. Disponível em https://encurtador.com.br/kEGUX>. Acesso em 1.5.2023.

2 BORBA, Rodrigo Esperança. Coisa julgada versus Inconstitucionalidade: controvérsias e perspectivas. Curitiba: Juruá, 2011. p. 24.

3 BORBA, Rodrigo Esperança. Alienação Fiduciária de Imóvel: Garantia fomentadora do crédito amparada na eficiência dos Cartórios Extrajudiciais. Portal do RI, em 2015. Disponível em: https://encurtador.com.br/ouyRU. Acesso em: 1.5.2023.

Fonte: Migalhas

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