Confira o artigo de autoria de Érika Silvana Saquetti Martins e Robson Martins publicado no Migalhas.
O Supremo Tribunal Federal tem jurisprudência pacífica no sentido de que há necessidade de que os titulares que ingressaram após 05.10.1988, sejam aprovados em concurso público de provas e títulos, sob pena de nulidade do ato.
A Constituição Cidadã de 1988 e a lei 8.935/94 inauguraram um novo formato jurídico para as serventias extrajudiciais, formadas pelo Tabelionato de Notas, Registradores Civis de Pessoas Naturais, Tabelionato de Protestos, Registro Civil de Pessoas Jurídicas, Registro de Títulos e Documentos e Registradores de Imóveis. O art. 236 da CF/88 assevera:
Art. 236. Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público.
§ 1º Lei regulará as atividades, disciplinará a responsabilidade civil e criminal dos notários, dos oficiais de registro e de seus prepostos, e definirá a fiscalização de seus atos pelo Poder Judiciário.
§ 2º Lei federal estabelecerá normas gerais para fixação de emolumentos relativos aos atos praticados pelos serviços notariais e de registro.
§ 3º O ingresso na atividade notarial e de registro depende de concurso público de provas e títulos, não se permitindo que qualquer serventia fique vaga, sem abertura de concurso de provimento ou de remoção, por mais de seis meses.
Assim, notário e registrador são profissionais do direito, dotados de fé pública, prezando sempre pela segurança jurídica, validade, eficácia e publicidade dos atos e negócios jurídicos.
Incrivelmente, passados praticamente 34 anos da promulgação da CF/88, este foi um dos únicos artigos da Carga Magna que ainda não teve qualquer alteração efetivada pelo Congresso Nacional, via Emenda Constitucional, embora existam propostas tentando efetivar interinos em serventias, sem o devido concurso público (p. ex., EC 471/2005).
Mister consignar que o trabalho exercido pelo tabelião e pelo registrador é vital para a manutenção da segurança jurídica no país, pois, por exemplo, o registrador de imóveis1:
[…] é o responsável pela manutenção, conservação e proteção dos direitos reais. Em alguns países ele é chamado de conservador da propriedade. O termo ‘oficial’ é genérico, servindo tanto para notários como para registradores. O registrador presta um serviço público e, portanto, a expressão “cartório” muitas vezes é substituída pela expressão ‘serviço de registro”. Para compreender o serviço de registro de imóveis no Brasil, é necessário localizar a atividade na CF/88. É o art. 236 que ilumina o caminho, determinando que “os serviços notariais e de registros são exercícios em caráter privado, por delegação do poder público”.
Não se pode olvidar, aliás, que a serventia de registro de imóveis tem correlação efetiva com o direito à moradia, já que a propriedade imóvel é direito constitucional2:
[…] Antes mesmo de se aferir a existência de eventual direito à casa própria é imperioso tratar, ainda que superficialmente, da maneira como a Constituição Federal de 1988 regulamenta a garantia fundamental à propriedade, assim como sua denominada função social, bem como se esta é fator capaz de vincular ou, até mesmo, de limitá-la.
Por sua vez, a fé pública, por outro lado, é um dos pilares da atividade notarial e registral, pois é vista sob dois aspectos3:
[…] a) na esfera dos fatos, o efeito de presunção de veracidade dos atos praticados e, consequentemente, de seu valor probatório; b) na esfera do Direito, a autenticidade e legitimidade dos atos e negócios documentados ou levados à publicidade registral.
Importante asseverar que por muito tempo as Ordenações do Reino vigoraram como leis em nosso país, inclusive na seara notarial e registral, sendo que a Igreja Católica, durante um período do Império, teve importante papel no direito registral imobiliária do país4:
[…] As Ordenações do Reino vigoraram durante o período em que o Brasil era colônia de Portugal. Essas disposições régias davam relevo especial à atividade dos Tabeliães, nomeados exclusivamente pela Coroa Portuguesa para atuarem em todo o Reino. Essas ordenações regulavam a prática dos atos a cargo desses funcionários (Livro I, títulos LXXVII e LXXX; Livro II, título XLV), dispondo sobre como seriam lavradas as Escrituras negociais (contratos) e testamentos.
Durante o Império, que teve início em 1822 com a declaração de independência, houve ênfase, em matéria de registros públicos, relativamente á tutela das pessoas e da propriedade imobiliária. A atividade de realização desses registros (de pessoas naturais e da propriedade imobiliária) ficou principalmente a cargo da Igreja Católica, refletindo a situação social tremendamente deficitária do país e a debilidade da estrutura administrativa.
Anteriormente à data de promulgação da CF (05.10.1988), praticamente cada Estado da federação tinha uma forma de organizar tais serviços notariais e registrais, alguns realizando concursos, outros não, portanto, com o advento da CF/88, tal paradigma mudou radicalmente, exigindo-se, para a titularidade de qualquer serventia extrajudicial, da aprovação em concurso público de provas e títulos.
O Supremo Tribunal Federal tem jurisprudência pacífica no sentido de que há necessidade de que os titulares que ingressaram após 05.10.1988, sejam aprovados em concurso público de provas e títulos, sob pena de nulidade do ato5:
[…] O ingresso na atividade notarial e registral sem a prévia aprovação em concurso público de provas e títulos, traduz-se na perpetuação de ato manifestamente inconstitucional, mercê de sinalizar a possibilidade juridicamente impensável de normas infraconstitucionais normatizarem mandamentos constitucionais autônomos, autoaplicáveis. 8. O desrespeito à imposição constitucional da necessidade de concurso público de provas e títulos para ingresso da carreira notarial, além de gerar os claros efeitos advindos da consequente nulidade do ato (CRFB/88, art. 37, II e §2º, c/c art. 236, §3º), fere frontalmente a Constituição da República de 1988, restando a efetivação na titularidade dos cartórios por outros meios um ato desprezível sob os ângulos constitucional e moral. 9. Ordem denegada.” (MS 26.860, Rel. Min. Luiz Fux, Tribunal Pleno, DJe de 23/9/2014) “CONSTITUCIONAL. MANDADO DE SEGURANÇA. DELEGAÇÃO DE ATIVIDADE NOTARIAL OU CARTORÁRIA EXTRAJUDICIAL. INGRESSO APÓS A PROMULGAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO DE 1988. NECESSÁRIA PRÉVIA APROVAÇÃO EM CONCURSO PÚBLICO. 1. Após a promulgação da Constituição de 1988, a delegação de atividade notarial ou cartorária extrajudicial.
Em outra oportunidade, o STF verificou flagrante inconstitucionalidade em se transformar/promover servidores do Judiciário em tabeliães ou registradores6:
[…] Lei estadual que estabelece normas para a realização do concurso de remoção das atividades notariais e de registro. Dispositivo que assegura ao técnico judiciário juramentado o direito de promoção à titularidade da mesma serventia e dá preferência para o preenchimento de vagas, em qualquer concurso, aos substitutos e responsáveis pelos expedientes das respectivas serventias. Ofensa aos arts. 37, II, e 236, § 3º, da CF.
Além de tal ato inconstitucional não decair no prazo de 5 anos7: […] A revisão de atos eivados de flagrante inconstitucionalidade, como é o caso do de outorga de delegação, sob a égide da Carta de 1988, sem prévia realização de concurso de provimento ou de remoção, não se sujeita ao prazo decadencial quinquenal previsto no art. 54 da lei 9.784/99.
O Conselho Nacional de Justiça – CNJ, como forma de regulamentar tal importante atividade, editou a Resolução 81/09 com as diretrizes mínimas para a efetivação de tais concursos públicos, trazendo maior segurança para os Tribunais de Justiça do país.
Assim, os titulares das serventias extrajudiciais, embora aprovados em concurso público, são delegatários do serviço público, agentes em colaboração, ou seja, não são servidores públicos em sentido estrito, sendo incabível a aplicação da regra da aposentadoria compulsória8:
[…] O art. 40, § 1º, II, da Constituição do Brasil, na redação que lhe foi conferida pela EC 20/1998, está restrito aos cargos efetivos da União, dos Estados-membros, do Distrito Federal e dos Municípios – incluídas as autarquias e fundações. Os serviços de registros públicos, cartorários e notariais são exercidos em caráter privado por delegação do poder público – serviço público não privativo. Os notários e os registradores exercem atividade estatal, entretanto não são titulares de cargo público efetivo, tampouco ocupam cargo público. Não são servidores públicos, não lhes alcançando a compulsoriedade imposta pelo mencionado art. 40 da CF/1988 – aposentadoria compulsória aos setenta anos de idade.
Como atua como particular em colaboração com o poder público, o delegatário não se restringe ao teto do funcionalismo público, conquanto o interino sim9:
[…] O titular interino não atua como delegado do serviço notarial e de registro porque não preenche os requisitos para tanto; age, em verdade, como preposto do poder público e, nessa condição, deve-se submeter aos limites remuneratórios previstos para os agentes estatais, não se lhe aplicando o regime remuneratório previsto para os delegados do serviço público extrajudicial (art. 28 da lei 8.935/94).
No que tange à responsabilidade civil, o STF, por intermédio da tese 777 de repercussão geral, asseverou:
O Estado responde, objetivamente, pelos atos dos tabeliães e registradores oficiais que, no exercício de suas funções, causem danos a terceiros, assentado o dever de regresso contra o responsável, nos casos de dolo ou culpa, sob pena de improbidade administrativa.
Neste viés, se eventualmente um registrador civil causar dano a um usuário do serviço, por ato típico da função, o Estado será objetivamente responsável, sendo que, uma vez perdedor, o Estado posteriormente ajuizará ação civil regressiva em desfavor do Tabelião ou Registrador, sob pena de improbidade administrativa.
No tema de repercussão geral 349, o STF declarou que apenas o registro de alienação fiduciária no DETRAN do Estado já é suficiente para a constituição da garantia fiduciária e respectiva publicidade, não havendo necessidade de duplo registro no Registro de Títulos e Documentos10:
[…] Propriedade fiduciária. Veículo automotor. Registro. Surge constitucional o § 1º do art. 1.361 do CC/2002 no que revela a possibilidade de ter-se como constituída a propriedade fiduciária com o registro do contrato na repartição competente para o licenciamento do veículo.
Também é constitucional lei do Estado-membro que determina que os tabeliães e registradores tenham de residir na Comarca, bem como comprovar assiduidade na serventia, conforme julgamento do STF11:
[…] Compete aos Estados-membros, no exercício de sua autonomia administrativa e no desempenho do papel fiscalizador do Poder Judiciário local, inspecionar, ordenar, normatizar e disciplinar a prestação dos serviços notariais e de registro, inclusive com a estipulação de deveres dirigidos aos agentes delegados, relacionados à prestação efetiva e adequado do serviço, com qualidade à população (lei 8.935/94, art. 38), tal como, no caso, através da criação dos deveres de residir na comarca ou distrito onde localizada a serventia e de observar a pontualidade e a assiduidade no serviço. Compatível com o regime geral (lei 6.015/73, art. 19) a estipulação, pelos Estados-membros e Distrito Federal, de prazo para a expedição de certidões pelas instituições cartorárias, observado o parâmetro máximo fixado na Lei dos Registros Públicos (até cinco dias).
No que tange especificamente à cobrança de emolumentos, o STF declarou que se trata de taxa, espécie tributária, com as consequências oriundas de tal determinação constitucional12, inclusive no que tange às vedações constitucionais ao poder de tributar:
[…] A jurisprudência do STF firmou orientação no sentido de que as custas judiciais e os emolumentos concernentes aos serviços notariais e registrais possuem natureza tributária, qualificando-se como taxas remuneratórias de serviços públicos, sujeitando-se, em consequência, quer no que concerne à sua instituição e majoração, quer no que se refere à sua exigibilidade, ao regime jurídico-constitucional pertinente a essa especial modalidade de tributo vinculado, notadamente aos princípios fundamentais que proclamam, entre outras, as garantias essenciais (a) da reserva de competência impositiva, (b) da legalidade, (c) da isonomia e (d) da anterioridade.
Pode a União, ademais, instituir isenção para os atos de seu interesse, dado o caráter público de tais solicitações13:
[…] O decreto-lei 1.537/177, ao instituir isenção para a União do pagamento de custas e emolumentos aos Ofícios e Cartórios de Registro de Imóveis e de Registro de Títulos e Documentos, disciplina, em caráter geral, tema afeto à própria função pública exercida pelos notários e registradores, conforme previsto no § 2º do art. 236 da Constituição da República. Competência legislativa da União. Viola o art. 236, § 2º, da Constituição Federal, ato do poder público que nega à União o fornecimento gratuito de certidões de seu interesse.
Por fim, imperioso destacar que o próprio Supremo Tribunal Federal enaltece a importância da atividade notarial e registral, como típica atividade estatal, conforme o seguinte julgado14:
[…] Numa frase, então, serviços notariais e de registro são típicas atividades estatais, mas não são serviços públicos, propriamente. Inscrevem-se, isto sim, entre as atividades tidas como função pública lato sensu, a exemplo das funções de legislação, diplomacia, defesa nacional, segurança pública, trânsito, controle externo e tantos outros cometimentos que, nem por ser de exclusivo domínio estatal, passam a se confundir com serviço público.
Neste viés, verifica-se que a atividade notarial e registral, permeada por inúmeros princípios e valores constitucionais, reveste-se de complexo e denso feixe de atribuições e responsabilidades legais, defluindo sua grande importância para todos, especialmente no que tange à segurança jurídica e paz social, num leque constitucional garantidor que o próprio Supremo Tribunal Federal visa proteger para o aperfeiçoamento de tal atividade para benefícios da sociedade brasileira.
1 CASSETTARI, Christiano. Registro de Imóveis / Christiano Cassettari, Marcos Costa Salomão; coordenado por Christiano Cassetari – Indaiatuba: Editora Foco, 2022, p. 224-225
2 MARTINS, Robson. O direito à moradia das pessoas idosas e o superendividamento. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2022, p. 72.
3 LOUREIRO, Luiz Guilherme. Registros Públicos: teoria e prática. 10 ed. ver. atual e ampl. Salvador: Editora Juspodivm, 2019, p. 55
4 PAIVA, João Pedro Lamana. Registro civil de pessoas jurídicas / João Pedro Lamana Paiva, Pércio Brasil Alvares; coordenado por Christiano Cassettari, – 5 ed. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2022, pág. 5
5 STF, ARE 862.156, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 12.03.2015
6 STF, ADI 1.855, rel. min. Nelson Jobim, j. 16-5-2002, P, DJ de 19-12-2002
7 STF, MS 29.265 AgR, rel. min. Rosa Weber, j. 30-8-2016, 1ª T, DJE de 11-5-2017
8 STF, ADI 2.602, red. do ac. min. Eros Grau, j. 24-11-2005, P, DJ de 31-3-2006
9 STF, MS 30.180 AgR, rel. min. Dias Toffoli, j. 21-10-2014, 1ª T, DJE de 21-11-2014
10 STF, RE 611.639, rel. min. Marco Aurélio, j. 21-10-2015, P, DJE de 15-4-2016, Tema 349
11 STF, ADI 3.264, rel. min. Rosa Weber, j. 21-3-2022, P, DJE de 29-3-2022
12 STF, ADI 1.378 MC, rel. min. Celso de Mello, j. 30-11-1995, P, DJ de 30-5-1997
13 STF, ADPF 194, red. do ac. min. Alexandre de Moraes, j. 5-8-2020, P, DJE de 13-10-2020
14 STF, ADI 3.643, voto do min. Ayres Britto, j. 8-11-2006, P, DJ de 16-2-2007
Fonte: Migalhas