Sancionado nesta terça-feira (31/10) pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o Marco Legal das Garantias (Lei 14.711/2023) deve estimular o crédito imobiliário e reduzir juros por permitir que um bem seja usado para assegurar mais de um empréstimo, de acordo com especialistas no assunto ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico.
O Marco Legal das Garantias, que estabelece novas regras e condições para a constituição de penhora, hipoteca ou transferência de imóveis para pagamento de dívidas, tem origem no Projeto de Lei 4.188/2021, aprovado pelo Senado em julho deste ano, sob relatoria do senador Weverton Rocha (PDT-MA). O texto foi definitivamente aprovado na Câmara dos Deputados no último dia 3.
Entre outros pontos, a norma permite ao devedor contrair novas dívidas com o mesmo credor da alienação fiduciária original, dentro do limite da sobra de garantia da operação inicial. Por exemplo, se o valor garantido por um imóvel no primeiro empréstimo for de até R$ 100 mil e a dívida original for de R$ 20 mil, o devedor poderá tomar novo empréstimo com o mesmo credor em valor de até R$ 80 mil.
O texto também permite a escolha de outra instituição, desde que ela seja integrante do mesmo sistema de crédito cooperativo da instituição credora da operação original.
A lei cria ainda a figura do agente de garantia, que será designado pelos credores e atuará em nome próprio e em benefício deles. Ele poderá fazer o registro do gravame do bem, gerenciar os bens e executar a garantia, valendo-se inclusive da execução extrajudicial quando previsto na legislação especial aplicável à modalidade de garantia. E terá ainda poder de atuar em ações judiciais sobre o crédito garantido.
Além disso, a norma permite ao tabelião de protesto de qualquer tipo de dívida não paga enviar intimação ao devedor por meio de aplicativos de mensagens instantâneas, como o WhatsApp. Essa intimação será considerada cumprida apenas com a funcionalidade de recebimento liberada na plataforma.
Outro dispositivo permite ao credor delegar ao tabelião a proposta de medidas de incentivo à renegociação, inclusive podendo receber o valor da dívida já protestada e indicar eventual critério de atualização desse valor. Se a dívida for liquidada dessa forma, caberá ao devedor arcar com os custos de emolumentos pelo registro do protesto e seu cancelamento, além das demais despesas.
A norma ainda altera a Lei de Registros Públicos (Lei 6.015/1973) para permitir aos cartórios de registro civil das pessoas naturais emitir certificados de vida, de estado civil e de domicílio físico ou eletrônico do interessado. Para isso, deverá haver um convênio com a instituição interessada e comunicação imediata e por meio eletrônico a ela da prova de vida atestada.
Repercussão da lei
Os especialistas ouvidos pela ConJur consideram o Marco Legal das Garantias positivo, pois acreditam que a norma pode diminuir o custo do crédito no mercado.
João Quinelato, professor de Direito Civil do Ibmec e advogado, afirma que a principal mudança trazida pela norma é a possibilidade de celebrar alienações fiduciárias sucessivas. Ou seja, o devedor poderá dar o mesmo bem em garantia em mais de uma operação, desde que ele tenha valor suficiente para cobrir todas as transações.
“A medida aumenta a potencialidade de crédito de um mesmo bem, ampliando o acesso ao crédito e fazendo com que o proprietário do bem possa, simultaneamente, tomar recursos em mais de uma operação”, opina Quinelato.
Eduardo Bruzzi, sócio do escritório BBL Advogados, da área consultiva regulatória de Payments, Banking, Fintech & Crypto, tem visão semelhante.
“Sem dúvidas, a principal mudança proporcionada pelo Marco Legal das Garantias é a possibilidade de constituir diversas propriedades fiduciárias sobre o mesmo bem imóvel, à semelhança do que já ocorre no instituto da hipoteca, todavia, com as facilidades inerentes à cessão fiduciária, via desdobramento da propriedade e consolidação da propriedade fiduciária pelo credor nos casos de inadimplência do devedor, possibilitando posterior execução extrajudicial da dívida”.
A partir de agora, ressalta Bruzzi, é provável que o crédito fique mais barato em razão de uma maior racionalização das garantias, que poderão ser constituídas de forma a corresponder ao montante contratado. Por exemplo, uma pessoa proprietária de um imóvel de R$ 200 mil poderá contratar um empréstimo de R$ 50 mil, e a garantia corresponder a esse valor. E o restante do valor do bem, R$ 150 mil, ainda poderá ser utilizado como garantia em outras operações.
Ao regular a oferta de um bem em garantia de mais de um empréstimo, a nova lei aumenta a segurança jurídica do credor, permitindo que ele tenha rapidez na retomada de móveis e imóveis em caso de inadimplência do devedor, destaca Marcello Vieira de Mello, especialista em Direito Empresarial e sócio-fundador do GVM Advogados.
“Hoje existe muita insegurança e muito receio de conceder crédito baseado em garantia porque a pessoa sabe que ela pode ficar 20 anos, 15 anos, dez anos na Justiça brigando para que possa executar a garantia e ter o bem para si. Com regras mais claras, que imprimam rapidez ao procedimento, a tendência é que essa norma aumente a oferta de crédito no país e a competitividade, e reduza os spreads bancários. Isso porque o banco não precisa ter uma sobretaxa tão grande se não tiver de contar com problemas em uma eventual execução da garantia.”
Nessa linha, Luis Fernando Zenid, sócio da área de Construção e Infraestrutura do Donelli, Abreu Sodré e Nicolai Advogados, avalia que a tendência é que, com o passar do tempo e a aplicação da lei, as instituições financeiras compreendam que o acesso ao bem dado em garantia ficou mais fácil e não mais demanda um longo processo judicial, durante o qual o bem pode ser deteriorado ou perder a sua liquidez. Isso pode gerar uma redução das taxas de juros, aponta Zenid.
Especialista em Direito Imobiliário, Olivar Vitale, sócio do VBD Advogados, diz que o Marco Legal das Garantias é “importantíssimo para o crescimento econômico do país”. A norma, segundo ele, cria mecanismos para permitir que os milhares de imóveis que estão “parados” sejam usados para diminuir o déficit habitacional e aumentar a produção de bens.
Vetos de Lula
O presidente Lula vetou a possibilidade de tomada de veículos sem autorização da Justiça, por meio de mandados extrajudiciais.
A apreensão extrajudicial seria aplicada nos casos em que o devedor não entregasse o bem dentro do prazo estabelecido. Conforme o texto aprovado por deputados e senadores, os cartórios ficariam autorizados a lançar a apreensão em uma plataforma eletrônica.
Ao vetar os dispositivos sobre o tema, o governo alegou que a medida é inconstitucional e afetaria os direitos e as garantias individuais.
“Em que pese a boa intenção do legislador, a proposição legislativa incorre em vício de inconstitucionalidade, visto que os dispositivos, ao criarem uma modalidade extrajudicial de busca e apreensão do bem móvel alienado fiduciariamente em garantia, acabaria por permitir a realização dessa medida coercitiva pelos tabelionatos de registro de títulos e documentos, sem que haja ordem judicial para tanto, o que violaria a cláusula de reserva de jurisdição e, ainda, poderia criar risco a direitos e garantias individuais”, apontou o Executivo.
Os dispositivos vetados por Lula poderão ser mantidos ou derrubados por deputados e senadores, que analisarão as mudanças em sessão conjunta do Congresso Nacional.
Decisão do STF
O Supremo Tribunal Federal, na última quinta-feira (26/10), declarou a constitucionalidade da execução extrajudicial por bancos nos contratos de mútuo pelo Sistema Financeiro Imobiliário, com a alienação fiduciária prevista na Lei 9.514/1997 (RE 860.631).
Lula vetou o dispositivo do Marco Legal das Garantias que permitia a tomada de veículos sem autorização da Justiça, por meio de mandados extrajudiciais, mas Luis Fernando Zenid entende que o veto do presidente não tem relação com a decisão do STF, uma vez que tratou de bens móveis, enquanto a corte abordou os imóveis.
Caso o Congresso derrube o veto de Lula e a questão seja judicializada, a tendência é que o Supremo valide a tomada extrajudicial de veículos, opinam Eduardo Bruzzi e Marcello Vieira de Mello.
Para Olivar Vitale, o veto de Lula está na contramão da decisão do Supremo. O advogado afirma que as garantias constitucionais de acesso à Justiça e da ampla defesa não se perdem com os processos extrajudiciais, porque aquele que se sentir lesado pode procurar o Judiciário.
Já João Quinelato avalia ser importante que “a desburocratização, a desjudicialização e a modernização de institutos não importem em precarização de direitos, o que não parece ser a hipótese do Marco Legal das Garantias”. “Ao revés: as medidas tendem a baratear o crédito, ampliar o acesso ao crédito para camadas que antes não eram contempladas e, consequentemente, fazer do crédito ferramenta de diminuição de desigualdades”, disse ele.
“É importante ainda que as instituições de crédito estimulem o crédito responsável, não incentivem que o consumidor inadvertidamente tome crédito de maneira desenfreada. A responsabilidade, tanto de quem toma quanto de quem dá o crédito. deve vir a reboque do Marco Legal das Garantias”, diz Quinelato. Com informações da Agência Senado.
Fonte: ConJur